13 julho 2006

Uma questão de domínio

O maior dos problemas com a anorexia é a dificuldade de diagnóstico. As pessoas que convivem com o anorético numa base diária vão acompanhando as alterações físicas que vão ocorrendo sem delas se aperceberem. Reconhecem a palidez, a magreza, mas sem o efeito choque que só o distanciamento permite não são capazes de obviar a verdadeira dimensão da mudança.

No entanto, os sinais estão lá e são vários. Além da perda de peso e da alteração da tonalidade da pele que se segue ao inevitável princípio de anemia, há toda uma série de indicadores fisicos que permitem reconhecer o problema. As acentuadas quebra e queda de cabelo, a descalcificação das unhas - e em estados mais avançados - da própria estrutura óssea interna, a sensibilidade dentária exacerbada que é geralmente acompanhada de gengivas que sangram, o desregramento menstrual no caso das mulheres, alterações profundas no metabolismo basal (mecanismo que faz a gestão do racio entre a quantidade de energia ingerida sob a forma de calorias e a energia dispendida nas actividades físicas), desaceleração dos ciclos digestivos com principal incidência para problemas do trato intestinal, aumento da frequência respiratória, ritmo cardíaco irregular, diminuição da pressão arterial, aparecimento de uma leve camada de pêlo por todo o corpo (lanugem).

No entanto, é a nível comportamental que a verdadeira dimensão da doença se manifesta. A anorexia é uma doença do foro psicológico. É, simplesmente, uma questão de domínio do indivíduo sobre si mesmo. Tem a sua origem psiquiátria em distorções profundas da auto-imagem do indivíduo que podem ter raízes na insegurança física ou em problemas relacionais no círculo familiar (para apontar as causas mais frequentes). Não é, ao contrário do que é hábito pensar-se, uma doença restrita a mulheres adolescentes. Atinge também homens de qualquer idade e mulheres na sua vida adulta, embora seja mais difícil de diagnosticar nestes casos.

O anorético torna a comida na sua única preocupação. Todos os seus rituais diários são construídos em torno da alimentação, que acaba por se tornar no único elemento que o indivíduo consegue pragmaticamente controlar. A comida é pesada e medida, as calorias são contadas e não é raro que o anorético mantenha um registo escrito das calorias que consome e das que dispende e das horas a que o faz. Numa fase intermédia, a diminuição da necessidade de alimento é acompanhada por um aumento da necessidade de movimento, do tónus muscular, do processo cognitivo e da percepção do meio ambiente. O anorético é um viciado em comida e vai desenvolver uma série de mecanismos de camuflagem que lhe permitam mascarar o seu vício. Todas as refeições são ritualizadas, com a comida distribuída geometricamente no prato e comida em porções muito pequenas, a um ritmo muito lento. Tendencialmente, aumenta a necessidade de isolamento e a quebra dos horários tradicionais que obriguem a refeições conjuntas, como forma de ocultar a crescente diminuição da ingestão de alimento. A médio prazo e à medida que a comida assume um papel crescente na vida do indivíduo, surgem alterações na sua capacidade emocional, com o consequente afastamento dos círculos familiar, social e afectivo. O isolamento garante uma rede de segurança imprescindível à manutenção do processo de inanição voluntária e acaba por ser um desfecho natural até porque todas as pulsões afectivas, relacionais e sexuais desaparecem.

O diagnóstico por terceiros é o primeiro passo no caminho da cura. Reconhecer os sintomas e traçar um quadro fisiológico do grau de dependência é essencial para lidar com o anorético e para o levar a reconhecer que toda a sua estrutura de vida não passa do reflexo de uma dependência psíquica. Depois da admissão do problema o caminho é longo e, como com a heroína, dura toda a vida, porque a pulsão de voltar a controlar a comida nunca desaparece e porque as sequelas físicas se irão revelar e agudizar com o passar do tempo.

É uma batalha dura, duríssima, mas que pode ser ganha. Com coragem e ajuda.


3 Somethin' Else:

Blogger APC escreveu...

É mesmo! Gostei de ler este texto. Também estudei o tema, e achei o teu esclarecimento muito afincado, completo e pedagógico.
(I just wonder why!?...;-)

julho 14, 2006 12:17 da manhã  
Blogger Navel escreveu...

Sim, why? Is there something we should worry about?

julho 14, 2006 9:15 da manhã  
Blogger M. escreveu...

APC,

Pelo que te tenho lido, deves ter um conhecimento bem mais profundo dos mecanismos deste tipo de problema do que eu. :-)

Já por lá andei, em círculos, há vários anos atrás. Nada como um viciado para reconhecer outro e, infelizmente, alguém muito querido a uma pessoa que me é muito próxima está a entrar nesta maldita espiral. Desafortunadamente, fui a primeira a dar-me conta. A reconhecer os tiques e a falar. Duro. Muito duro.


Navel,

Nothing to worry about. :-) Been there, done that, won't have seconds. I've learned to eat. :-) How are you?

julho 16, 2006 11:27 da tarde  

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