22 maio 2006

Neoplatonismo e a nova ordem mundial

O neoconservadorismo - sedimentado na década de '70, nos Estados Unidos, e com raízes nas correntes intelectuais dos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial - está publicamente conotado com a administração de George W. Bush (como esteve com a de Reagan). Assente nos thinks tanks "American Enterprise Institute" (AEI) e "Project for the New American Century" (PNAC), o neoconservadorismo está particularmente orientado para uma visão imperial projectada para o exterior. Os ditos neocons actuais, como Cheney, Rize, Rumsfeld ou Wolfowitz, são seguidores de uma doutrina assente num princípio basilar: a crença de que a segurança nacional é alcançada através da promoção da liberdade e da democracia no exterior, através do apoio a movimentos pró-democráticos e, em alguns casos, através de intervenções militares.

Muito relacionados com o Partido Repúblico, os neocons consubstanciam o movimento nos mesmos dogmas que permitem a sua perpetuação: uma abordagem agressiva à política externa, o livre comércio, a oposição ao comunismo durante a guerra fria, o apoio a Israel e a Taiwan e a oposição ao Médio Oriente e a outros Estados que se suponha apoiarem o terrorismo. Os princípios do neoconservadorismo refletem-se pois num ênfase crescente na capacidade de defesa dos EUA, numa predisposição para desafiar regimes considerados hostis para os valores e os interesses dos EUA, na pressão para instaurar políticas de mercado-livre no estrangeiro e na promoção da democracia e da liberdade. Sempre sob o pretexto de que os regimes democráticos, no seu geral, são instigadores menos prováveis de guerras do que os países que vivem sob regimes totalitários. (...)

Após acusarem as administraçoes de George H. W. Bush (pai) e de Bill Clinton de ausência de clareza moral e de falta de convicção para cumprir os interesses estratégicos norte-americanos de forma unilateral, os neoconservadores encontraram na administração actual terreno fértil de actuação. No entanto, foi apenas após os atentados do 11 de Setembro que a política do presidente dos EUA se orientou no sentido neocon. De facto, com a publicação da "doutrina Bush", foram definitivamente estabelecidas as bases de actuação do actual império norte-americano, celebradas como uma vitória pelos neoconservadores:

"the fundamental premise of the Bush Doctrine is true: The United States possesses the means—economic, military, diplomatic—to realize its expansive geopolitical purposes. Further, and especially in light of the domestic political reaction to the attacks of September 11, the victory in Afghanistan and the remarkable skill demonstrated by President Bush in focusing national attention, it is equally true that Americans possess the requisite political willpower to pursue an expansive strategy." Thomas Donnelly em "The Underpinnings of the Bush doctrine".

"The most realistic response to terrorism is for America to embrace its imperial role. (...) The United States must become a kinder, gentler nation, must eschew quixotic missions abroad, must become, in Pat Buchanan's phrase, 'a republic, not an empire'. In fact this analysis is exactly backward: The September 11 attack was a result of insufficient American involvement and ambition; the solution is to be more expansive in our goals and more assertive in their implementation." Max Boot em "The Case for American Empire" publicado no conservador Weekly Standard

Acusados pelos conservadores mais tradicionais de serem uma variedade de neo-Jacobinos (agarrados a valores não-históricos e supra-nacionais que consideram prevalecer sobre as características das outras sociedades), os neoconservadores são muitas vezes conotados com o lobi semita e acusados de manter uma dupla lealdade para com o Estado de Israel. Ligada à noção de neoconservadorismo, prevalece a ideia de que os Judeus alcançam uma influência indevida nos EUA através do domínio intelectual dos seus líderes nacionais. (...)

Depois do 11 Setembro, tem sido debatida a influência do PNAC na administração Bush, com alguns autores a defenderem que os White Papers deste think tank se têm convertido em política real. Os factos dizem que vários membros do PNAC têm ligações com a indústria petrolífera (Cheney, Khalilzad, a família Bush), enquanto outros mantêm postos duradouros no establishment militar dos EUA (Elliott Abrams, Donal Rumsfeld, Paul Wolfowitz). Não será pois de todo surpreendente que a actuação da PNAC se focalize na intervenção dos EUA no Iraque, tendo recentemente criado um Comité para a Libertação do Iraque, a propósito do qual reuniu com a Secretária de Estado da Defesa, Condoleezza Rice.

O objectivo máximo traçado pelo think tank consiste em estabelecer a "Pax Americana" (democracia e liberdade) por todo o globo, transformando os EUA, a derradeira superpotência, num império planetário através do uso da força das armas. A título de curiosidade, mencione-se que a última proposta de orçamento de Bush menciona a quantia exacta (ao dólar) a gastar em defesa que o PNAC pediu em 2000. Uma das posições-chave da instituição, disponíveis para consulta no website abaixo mencionado, prevê o fim da "devoção" pelo Tratado de Mísseis Anti-Balísticos, que foi herdada da administração Clinton. (...)

De Platão a Strauss
Embora pouco abordada pela imprensa, a profunda influência de Leo Strauss nos actuais arquitectos neoconservadores da política externa dos EUA é assumida. Christopher Hitchens, um feroz defensor da guerra, escreveu em 2002, num artigo intitulado "Machiavelli in Mesopotamia":

"part of the charm of the regime-change argument (from the point of view of its supporters) is that it depends on premises and objectives that cannot, at least by the administration, be publicly avowed. Since Paul Wolfowitz is from the intellectual school of Leo Strauss – and appears in fictional guise as such in Saul Bellow’s novel Ravelstein – one may even suppose that he enjoys this arcane and occluded aspect of the debate."

Por outro lado, é precisamente através da ingerência de Strauss na política neoconservadora americana que a filosofia platonista chega à administração de Bush. Como afirma John Lewis, "the neoconservative movement is the explicit inculcation of Platonism into American politics." (...)


A investigadora canadiana Shadia Drury dedica-se ao estudo da obra de Strauss e não tem dúvidas em relação a dois pontos essenciais: Strauss baseou grande parte da sua filosofia numa interpretação pessoal da obra de Platão e a actual administração neoconservadora dos EUA segue fielmente alguns dos princípios mais radicais enunciados pelos dois autores. Para Drury, a ligação entre a crença de Strauss na eficácia e na utilidade das mentiras na política e o facto de a adminstração Bush ter baseado a invasão unilateral do Iraque precisamente numa mentira (existência de armas de destruição massiva) é óbvia.

Shadia prossegue defendendo que os dois autores mais admirados por Strauss, Platão e Nietzche, defenderam que as massas não são merecedoras nem de verdade, nem de liberdade, o que prova que Leo Strauss nunca poderá ser considerado um democrata liberal, já que nega ele mesmo a existência de um direito natural à liberdade, postulando, pelo contrário, que os seres humanos não nascem nem livres, nem iguais, mas sim destinados a uma posição de subordinação. Aliás, nas palavras de outro autor, David Brin, a maioria dos neocons straussianos actuais despreza de forma evidente (tal como Strauss e Platão o fizeram) o "homem vulgar", que afirmam admirar. A obra "Direito Natural e História" ilustra também que Strauss defende o realismo político de Thrasymachus e Maquiavel, afirmando que a justiça serve apenas os interesses do mais forte, ou seja, que aqueles que detêm o poder criam as regras no seu próprio interesse, chamando-lhe justiça.

Por outro lado, Strauss defende a visão platónica da "mentira nobre" defendendo que os "sábios" (ainda segundo a classificação de Platão) devem ocultar as suas visões para poupar os sentimentos das massas e para proteger as elites de possíveis represálias. Uma visão que desemboca na noção de que as elites têm uma justificação moral para mentir, de forma a evitar a perseguição, e na crença de que a superioridade dos filósófos (os verdadeiros governantes por direito platónico) reside na sua superioridade intelectual e não moral. Da mesma forma, defende David Brin, a frequente e ansiosa predisposição dos neoconservadores norte-americanos para usar as "mentiras nobres" de Platão (ou racionalizar desculpas, numa acepção mais contemporânea), para sustentar a sua posição como sábios filósofos e líderes de classe, revela um verdadeiro desrespeito pelas massas.

Ainda segundo Shadia Drury, Leo Strauss baseia-se numa bem definida estratificação social: os "sábios", amantes da verdade inalterada, não reconhecem imperativos de Deus ou moral alguma e dedicam-se apenas à busca dos seus prazeres elevados; os "cavalheiros", amantes da honra e da glória, crêm em Deus e regem-se por imperativos morais e estão sempre dispostos a embarcar em actos de grande coragem e auto-sacrifício; e os "vulgares", amantes da riqueza e do prazer, são egoistas, preguiçosos e indolentes e só podem ser forçados a elevar-se para lá da sua brutal existência através da iminência da morte ou da catástrofe.

Como Platão, Strauss acreditou que o supremo ideal político consistiria no domínio dos "sábios" que, no entanto, é inatingível no mundo real. Na sua obra "O Argumento e a Acção nas Leis de Platão", Strauss defende então a encoberta lei dos "sábios" como a real solução política. Numa época de modernidade em que o homem "vulgar" triunfou e a economia liberal destruiu a política, banalizou o entretenimento e transformou o homem em besta, Strauss baseou-se na superior estupidez do "cavalheiro" (corporizado na imagem de Xenophon), manifestada na sua disposição em correr nu para a batalha, de frente para a sua morte, para basear a salvação da humanidade.

De facto, segundo Strauss, apenas a guerra perpétua pode inverter o projecto de modernidade, com ênfase na auto-protecção, e, ao politizar novamente a vida, garantir a restauração da humanidade ao homem. Um elixir que, ao combinar na perfeição religião e nacionalismo, funciona em favor do desejo de honra e glória do "cavalheiro" neoconservador. Nas palavras de Shadia Drury:

"I never imagined when I wrote my first book on Strauss that the unscrupulous elite that he elevates would ever come so close to political power, nor that the ominous tyranny of the wise would ever come so close to being realised in the political life of a great nation like the United States. But fear is the greatest ally of tyranny." (...)

Por outro lado, sendo um ateu que acredita que não existe um fundamento racional para a moralidade, Strauss assume uma vertente niilista ao proclamar que todas as acções do Homem se orientam no sentido de beneficiar o indivíduo e os outros, sem que para isso haja qualquer razão objectiva; existem apenas recompensas e castigos terrenos. No entanto, Strauss não nega a existência de qualquer verdade, ele acha que a realidade independente consiste na natureza e na sua ordem estratificada; como Nietzsche, acredita (e lamenta) que a história da civilização ocidental levou ao triunfo dos vulgares e inferiores. Assim sendo, Strauss interpreta Platão defendendo que os filósofos devem voltar à sua caverna e manipular as imagens (na forma dos media), sabendo de antemão que as suas são mentiras nobres.

Ainda assim, Shadia Drury acredita que a maioria dos neoconservadores norte-americanos querem genuinamente espalhar o modelo comercial de democracia liberal através do globo, convencidos que estão de que isso é o melhor, não só para a América, como também para o mundo. Como escreveu Kristol nas "Reflexões de um Neoconservador":

"Neoconservatives believe… that the goals of American foreign policy must go well beyond a narrow, too literal definition of ‘national security’. It is the national interest of a world power, as this is defined by a sense of national destiny … not a myopic national security." (...)

Em última análise, Strauss não seria tão hostil à noção de democracia como à de liberalismo. Ao reconhecer nas massas o poder conferido pelo acumular dos números, Strauss acredita que tudo o que possa ser feito para arrastar a multidão é legítimo - se for possível utilizar a democracia para virar as massas contra a sua própria liberdade, esse será um grande triunfo. Para Drury, essa é uma táctica que os neoconservadores usam consistentemente e, em alguns casos, com grande sucesso.

Para John Lewis, a actuação neoconservadora resume-se a uma forma de distorção dos valores políticos de actuação. Com base da interpretação dada por Strauss aos diálogos de Platão, os neocons acreditam que as ideias devem ser tomadas pela autoridade e adaptadas a uma realidade imperfeita entre pessoas que não conseguem realmente compreendê-las. Por exemplo. Quando o presidente Bush apontou o Irão e a Coreia do Norte como fazendo parte do "eixo do mal", enunciou uma ideia na sua forma "perfeita". De seguida, pôs a ideia em prática ao iniciar conversações com os coreanos e ao pedir às NU que pressionem o Irão. Por outras palavras, Bush fez exactamente o que o seu opositor Kerry prometeu, encobrindo a sua actuação sob a capa de um "princípio". Naquele que é um gesto profundamente platónico.


Para aprofundar:

Neoconservatism
Project for the New American Century
Neoconservatism, Islam and Ideology: The Real Culture War an article by David Brin, Ph.D.
Noble lies and perpetual war: Leo Strauss, the neocons, and Iraq an article by Danny Postel
Opposing Platonic Conservatism: A Matter of Values by John Lewis


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2 Somethin' Else:

Blogger M. escreveu...

Eu sei que mais de 13.000 caracteres não são leitura adequada de blogue, mas foi mesmo impossível cortar mais parágrafos. Caso tenham a paciência de chegar ao fim, parabéns. ;-)

Jouéne,

Agradece ao teu amigo de sábado a excelente ideia e convida-o a acrescentar o que faltar. :-D

maio 22, 2006 3:05 da manhã  
Anonymous Anónimo escreveu...

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semelokertes marchimundui

dezembro 22, 2009 11:19 da manhã  

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