Driving through life
O percurso de oito quilómetros entre o cinema e casa converteu-se facilmente numa viagem de mais de cem. Entrei no carro, abri a janela de uma noite amena e aproveitei o embalo do sistema sonoro do shopping para meter Godinho no leitor de ccdd.
Subi a Alameda das Antas e já em Carlos Malheiro Dias decidi seguir em frente. Constituição afora. Apesar dos semáforos, o início da madrugada deixa-me mover com velocidade por esta cidade que sem deixar de ser minha deixou de me acolher. Ou talvez tenha sido eu que já não lhe pertença. Que já não pertença a lado nenhum. Talvez seja eu quem passou a pertencer apenas às pessoas que comigo permanecem.
Saí do IC1 em Leixões, passei o melhor restaurante italiano da cidade e voltei atrás logo depois do Passo da Boa Nova. Via as luzes citadinas da refinaria ao fundo e lembrei-me do meu pai. Da minha mãe. Do muito que sempre fizeram por mim, do muito que já me aturaram, do mundo que vão sofrendo com as minhas incertezas. Atravesso para Matosinhos pela ponte móvel à medida que os retardatários desta noite que já cheira a Verão recolhem às suas casas. Volto a acercar-me do Porto, pela beira-mar, e lembro-me de como me despedi da praia antes de me enfiar no avião, em 2003.
A Avenida Brasil não muda. A cidade corropia sobre si mesma, mas a Foz Velha estanca-se, altaneira nas suas penthouses, singela nos seus pisos térreos fronteiros às pequenas barcas de pesca. Pelo Fluvial acima lembro-me dos sonhos da ANJE, do entusiasmo inicial de quem apenas começa a construir uma carreira. O Campo Alegre e o Galiza, o Palácio dos primeiros sonhos, o Tropical das francesinhas madrugadoras para ajudar a anular a ressaca. A Árvore e o Jardim dos Prazeres. O restaurante dos jantares mal comidos dos tempos de estudante, quando despertava a crença política e a veia de esquerda. O empedrado que escorre para a Ribeira, onde todos buzinam no túnel. A marginal centenas de vezes percorrida, como hoje, a acelerar sem parar até às rulotes porque aí a curva é manhosa e há sempre malta a atravessar sem tirar os olhos das bifanas.
Na rotunda corto à direita. A viagem serviu apenas para contemplar, quando devia servir para me perder no que preciso de pensar. A marginal de Entre-os-Rios é a estrada que preciso. Há pessoas que puxam pelo corpo até à dor física chegar quando a mente precisa de funcionar, que rebentam os músculos nos treinos ou que esfrangalham o corpo na cama. Há pessoas que param para contemplar o mundo ao redor quando a cabeça tem uma manta de retalho que precisa de compor, que perdem o olhar no mar ou que seguem um pássaro com os olhos.
Eu conduzo. O mais rápido que possa. A estrada de Entre-os-Rios é sinuosa, curva-curva-contra-curva, entre árvores, vilas, rio de um lado, monte do outro. Segue assim até à barragem, o meu sítio de paragem e regresso. De madrugada o trânsito não existe por aqui e os carros que se cruzam comigo contam-se pelos dedos das mãos. Os chineses acreditam que os espíritos - que apenas seguem a direito - não nos conseguem acompanhar quando descrevemos curvas suficientes. Daí as pontes serpenteantes dos seus jardins. Eu limito-me a deixar o corpo gozar com as curvas cortadas a direito, as manobras anormais agarrada a duas mãos ao volante, a velocidade a que passam os objectos do lado de lá dos vidros do carro, a deixar o corpo disfrutar das sensações que lhe deixam a cabeça livre para o que precisa de fazer.
É dos meus momentos mais egoistas. Paro do meio da barragem, ligo os máximos e acerco-me da berma o mais que posso. Fecho os olhos e imagino que as comportas abrem, surrealisticamente com a dimensão da Hoover, carregando as dúvidas e as indecisões em enxurrada até ao mar. Lavando as lágrimas e os rancores e deixando apenas ainda outra página em branco que vai valer a pena preencher.
Subi a Alameda das Antas e já em Carlos Malheiro Dias decidi seguir em frente. Constituição afora. Apesar dos semáforos, o início da madrugada deixa-me mover com velocidade por esta cidade que sem deixar de ser minha deixou de me acolher. Ou talvez tenha sido eu que já não lhe pertença. Que já não pertença a lado nenhum. Talvez seja eu quem passou a pertencer apenas às pessoas que comigo permanecem.
Saí do IC1 em Leixões, passei o melhor restaurante italiano da cidade e voltei atrás logo depois do Passo da Boa Nova. Via as luzes citadinas da refinaria ao fundo e lembrei-me do meu pai. Da minha mãe. Do muito que sempre fizeram por mim, do muito que já me aturaram, do mundo que vão sofrendo com as minhas incertezas. Atravesso para Matosinhos pela ponte móvel à medida que os retardatários desta noite que já cheira a Verão recolhem às suas casas. Volto a acercar-me do Porto, pela beira-mar, e lembro-me de como me despedi da praia antes de me enfiar no avião, em 2003.
A Avenida Brasil não muda. A cidade corropia sobre si mesma, mas a Foz Velha estanca-se, altaneira nas suas penthouses, singela nos seus pisos térreos fronteiros às pequenas barcas de pesca. Pelo Fluvial acima lembro-me dos sonhos da ANJE, do entusiasmo inicial de quem apenas começa a construir uma carreira. O Campo Alegre e o Galiza, o Palácio dos primeiros sonhos, o Tropical das francesinhas madrugadoras para ajudar a anular a ressaca. A Árvore e o Jardim dos Prazeres. O restaurante dos jantares mal comidos dos tempos de estudante, quando despertava a crença política e a veia de esquerda. O empedrado que escorre para a Ribeira, onde todos buzinam no túnel. A marginal centenas de vezes percorrida, como hoje, a acelerar sem parar até às rulotes porque aí a curva é manhosa e há sempre malta a atravessar sem tirar os olhos das bifanas.
Na rotunda corto à direita. A viagem serviu apenas para contemplar, quando devia servir para me perder no que preciso de pensar. A marginal de Entre-os-Rios é a estrada que preciso. Há pessoas que puxam pelo corpo até à dor física chegar quando a mente precisa de funcionar, que rebentam os músculos nos treinos ou que esfrangalham o corpo na cama. Há pessoas que param para contemplar o mundo ao redor quando a cabeça tem uma manta de retalho que precisa de compor, que perdem o olhar no mar ou que seguem um pássaro com os olhos.
Eu conduzo. O mais rápido que possa. A estrada de Entre-os-Rios é sinuosa, curva-curva-contra-curva, entre árvores, vilas, rio de um lado, monte do outro. Segue assim até à barragem, o meu sítio de paragem e regresso. De madrugada o trânsito não existe por aqui e os carros que se cruzam comigo contam-se pelos dedos das mãos. Os chineses acreditam que os espíritos - que apenas seguem a direito - não nos conseguem acompanhar quando descrevemos curvas suficientes. Daí as pontes serpenteantes dos seus jardins. Eu limito-me a deixar o corpo gozar com as curvas cortadas a direito, as manobras anormais agarrada a duas mãos ao volante, a velocidade a que passam os objectos do lado de lá dos vidros do carro, a deixar o corpo disfrutar das sensações que lhe deixam a cabeça livre para o que precisa de fazer.
É dos meus momentos mais egoistas. Paro do meio da barragem, ligo os máximos e acerco-me da berma o mais que posso. Fecho os olhos e imagino que as comportas abrem, surrealisticamente com a dimensão da Hoover, carregando as dúvidas e as indecisões em enxurrada até ao mar. Lavando as lágrimas e os rancores e deixando apenas ainda outra página em branco que vai valer a pena preencher.
7 Somethin' Else:
Também eu penso quando conduzo, e por vezes sinto-me um verdadeiro piloto de rallies! A sensação é bestial!
É fabulosa. Fazer a máquina acompanhar o pensamento é uma sensação fabulosa.
O mais curioso é que é das poucas situações em que a condução me dá prazer; a sós, para pensar. Tirando isso, só em viagem e com companhia. A condução do dia-a-dia é estupidificante...
Na cidade, o carro invariavelmente está parado à porta daquilo a que se chama casa.
Os pézinhos são melhores para calcorrear as ruas e dizer mal dos condutores que não param nas passadeiras.
Infelizmente em Coimbra é complicado, senão mesmo impossível, andar de bicicleta, porque senão as quatro rodas só serviriam mesmo para viagens!
Só para te dizer que amei o título que deste a este post, e que acho que é uma bonita declaração de amor ao que quer que seja ;)
De repente páro e penso que num país tão pequeno como este, mas tão grande ao mesmo tempo, há uma geração que não se encontra, tão libertos andamos todos ao mesmo tempo. Num espaço tão pequeno tenho encontrado muita gente, num espaço tão mais pequeno que este ainda (que é dos blogs) mais ainda, mas ninguém que descreva tão bem algumas sensações que também eu tenho e experimento.
Bem hajas!
Afinal as diferenças entre uma portista de convicção e uma academista de coração não são assim tantas ;)
Beijos
Ah! E eu ADORO conduzir!!! AMO de paixão. Sem pessoas dentro do carro. Com música como única companhia.
(e sim, eu tirei a carta em Coimbra, Nunf, sei do que falas)
nunf,
Também gosto muito de andar a pé no Porto. Mas infelizmente no dia-a-dia torna-se complicado. As distâncias, se bem que não muito grandes, são mais difíceis de calcorrear do que em Coimbra.
E olha que os vossos condutores são bem civilizados, sempre que aí vou dou por mim a pensar nos semáforos "ah, é verdade, aqui a malta pára nas passadeiras". :-)
Quanto à bicla... Nunca aprendi... :-S Miserável, eu sei, mas a minha noção de equílibrio é inexistente e o centro de gravidade do meu corpo está algures entre o calcanhar e o tornozelo... Uma vergonha.
Nuno,
Obrigada! :-D E é amor pela vida, mesmo. Embora a parva tenha dias que não o mereça lá muito... ;-)
a,
[Agradecimento envergonhado... :-S]
Concordo numa coisa, andamos todos um bocado à deriva. E acho que de uma geração muito unida que fomos passámos a um bando de indivíduos perdidos na rua. Mas há sempre, sempre, sempre gente fantástica por aí, que vale a pena conhecer e manter nas nossas vidas. Amigos blogueiros inclusive. :-)
Quanto aos clubismos, é como dizem os antropólogos, as diferenças são bem maiores dentro de cada raça do entre as ditas... ;-)
Beijos!
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