Viragem
A casa vazia. Mais do que isso, oca. Tão fútil e sem significado como o olhar que se fixa na marca bege, deixada por um quadro omisso, também ele levado. A parede, gravada pela desventura, deixa transparecer que já houve, ali, por entre aquelas nódoas de uso, alguma cor, alguma luz. A memória oculta por aqueles olhos transparentes relembra agora a mancha de trevas raiadas pelo sangue da felicidade que costumava esconder o passar do tempo, impresso, afinal, na tinta que cobre a divisória.
Recorda-se da pintura grotesca que o seduziu na Galeria Miró, nome pretensioso para uns míseros 55 metros quadrados de exiguidade, empoeirados e atulhados de lixo dito vanguardista, da autoria de uns quantos alucinados, que conseguiram frustar até as suas esforçadas tentativas de falhar na vida, como forma de, através do sofrimento, elevarem a sua arte ao nível do supremo. Mesmo assim, o quadro atirado contra o vidro baço da suposta montra atraiu-o quase que macabramente. Atacado de fúria decorativa, decidiu que o único lugar para ele seria uma das paredes do seu recém inaugurado apartamento. Apesar de ainda hoje não entender como foi capaz de desembolsar 50 contos por uma pseudo pintura que foi obrigado a transladar da parede do quarto para a da sala, e isto se quisesse acabar de vez com os pesadelos que ela lhe infligia, a sedução manteve-se. O prazer que o contacto das pontas dos dedos com a rugosidade do óleo lhe deu quando, finalmente, conseguiu suspender a sua compra, de forma frontal à cama, nunca deixou de estar presente sempre que se dispunha a usufruir da beleza estranha do “buraco”, como lhe começou a chamar desde que uma das suas amigas lhe perguntou porque é que não se livrava daquela simulação frustrada da morte de uma estrela. Mesmo quando interiorizou que era realmente aquele pedaço de tela borratada que o fazia acordar de noite, sobressaltado com a imagem do escoadouro putrefacto que eram os bares underground que aos 19 anos se gabava de visitar, não foi capaz de se livrar do seu companheiro de insónias. Limitou-se a transplantá-lo para a sala, colocando-o numa posição em que não lhe faltasse luz, em que negro denso e profundo que o dominava pudesse brilhar e fazer sobressair os rasgões de um encarnado sanguíneo que o tornavam ainda mais hipnótico.
Nunca foi capaz de o emoldurar. Achava que se o fizesse estaria a encaixilhar também todo o significado que o maldito quadro pudesse ter, impedindo-o de se evadir, de se espalhar por toda a casa, de o envolver a ele próprio num sufocante tornado de angústia.
- Coisa estranha, murmurou.
Mesmo agora, contorcido sobre cinco almofadas puídas, não pelo uso, mas pelo esquecimento do fundo de um armário, não era capaz de ignorar que o “buraco” pertencia ali, que aquele rectângulo mais nítido da parede marca uma ausência. Um ponto final. Um abandono.
Os objectos não estão lá. Vão a caminho de um novo e promissor destino. Mas o espaço que lhes pertencia continua ocupado pelo hábito quotidiano de os ver, de os tocar, de os esperar sempre ali, a auxiliar ou a perturbar, dependendo dos casos e do uso que se queira dar ao mobiliário.
Ao alongar-se para agarrar o livro, abandonado no momento em que os seus olhos decidiram bloquear o mundo e metamorfosear-se em ecrã de projecção de memórias, o seu braço colidiu com o telefone e fez saltar o auscultador. Ouviu nitidamente o grito irritante da linha telefónica, anunciando às quatro paredes nuas a sua existência, o seu mal-estar por se encontrar assim, exposta ao silêncio ecoante da sala e e ao desprezo ignóreo do seu ouvinte.
La chute, página 28. A queda de quê? O monólogo começava a tornar-se cansativo e ele, mais do que farto do maldito “juge-pénitent” encharcado de “genièvre”, interrompera a leitura e recordara, nova vez, o suave perfume de maçãs verdes que tão inefavelmente o atraíra naquela miúda belga que, rememora, conheceu na Tate. Impressionantemente sozinha, achara do alto dos seus 15 anos, acompanhado que estava de mais de 50 outros alunos portugueses, a belga parecera-lhe distante, sábia, sedutora. Falara-lhe de arte num inglês seguro de si, que em nada desprestigiava o ensino belga, pregando uma cultura que hoje sabia ser superficial e memorizada, mas que na época melindrara a sua ignorância imberbe e fizera afluir, pela primeira vez na sua vida, o vulgar orgulho machista. Mas um luzidio ondular de cabelo perfumado, que obviou dois seios ainda insipientes mas provocantemente juvenis, foi o suficiente para que o seu apreço pela arte contemporânea se transformasse no eixo dos restantes cinco dias que passou em Londres, ainda que a sua musa permanecesse na Galeria, para o resto da sua memória. Talvez ainda hoje lá jaza, frágil e determinada, sapientemente comentando a infantilidade óbvia de todos os nomes da pintura e escultura britânicas. Ainda assim, crê ter sido ela a despoletar o seu amor obsessivo pela poesia, ao prostrá-lo diante de The Death of Chatterton, onde o malogrado poeta ruivo jaz num leito obscuro, parcialmente iluminado pela luz dormente que se derrama na sua face esquerda através da janela aberta. Wallis conseguiu pintar os 17 anos de desespero suicidário do poeta cuja vida primeiro o seduzira. Aos 15 anos, saber que uma existência fora tão pródiga em Vida que se auto-extingira com apenas mais dois invernos do que aqueles com que contava a sua própria vivência, assustara-o ao ponto de se deixar fascinar por génios loucos e precoces, transformando as suas vidas na sua ocupação principal. A sua primeira biografia, a de Chartterton, obviamente, fora pois dedicada a essa fugidia belga, cuja sobranceria instrutória fora afinal determinante para si.
É inútil regressar ao decrépito bar de Amesterdão, até porque já sabe que o autor do monólogo se limita a assistir à queda de uma vida. Só uma de entre tantas outras. Que interesse pode ter, sendo, além do mais, a de uma vulgar jovem anónima, sem obra reconhecida ou mérito atribuído?
O auscultador deslocado emite agora um som intermitente, indeciso, que, ainda assim, o impele para fora do apartamento, assemelhando-se a um dejá vu recalcado que lhe grita a incoerência que foi a decisão de se despedir de um apartamento que já não lhe pertence, onde a sua vida já só pode ser adivinhada e, o que é pior, em diferido. O livro deixou de lhe interessar, não há ninguém a quem telefonar. Os momentos que se tem dedicado a recordar estão ligados a meras ausências, não há nada ali que mereça persistir. Nem mesmo as almofadas. Tanto que antes de sair decide rasgá-las e afogar a companhia telefónica e Camus no seu recheio. As pretas têm esponja, a carmim e a cinzenta, penas. Porquê?
(25 de Maio de 1997)
A propósito de personagens, dimensões psíquicas e coerências narrativas.
A propósito de um café tomado numa noite estranha, em que nada fazia prever que a mente fosse capaz de se abstrair das agulhadas do pragmatismo quotidiano.
A propósito de viragens de rumo, de mudanças de ambientes e de recomeços voluntários.
A propósito daquela que foi a melhor companhia possível para esta noite. :-) Obrigada. Devo-te um café.
Recorda-se da pintura grotesca que o seduziu na Galeria Miró, nome pretensioso para uns míseros 55 metros quadrados de exiguidade, empoeirados e atulhados de lixo dito vanguardista, da autoria de uns quantos alucinados, que conseguiram frustar até as suas esforçadas tentativas de falhar na vida, como forma de, através do sofrimento, elevarem a sua arte ao nível do supremo. Mesmo assim, o quadro atirado contra o vidro baço da suposta montra atraiu-o quase que macabramente. Atacado de fúria decorativa, decidiu que o único lugar para ele seria uma das paredes do seu recém inaugurado apartamento. Apesar de ainda hoje não entender como foi capaz de desembolsar 50 contos por uma pseudo pintura que foi obrigado a transladar da parede do quarto para a da sala, e isto se quisesse acabar de vez com os pesadelos que ela lhe infligia, a sedução manteve-se. O prazer que o contacto das pontas dos dedos com a rugosidade do óleo lhe deu quando, finalmente, conseguiu suspender a sua compra, de forma frontal à cama, nunca deixou de estar presente sempre que se dispunha a usufruir da beleza estranha do “buraco”, como lhe começou a chamar desde que uma das suas amigas lhe perguntou porque é que não se livrava daquela simulação frustrada da morte de uma estrela. Mesmo quando interiorizou que era realmente aquele pedaço de tela borratada que o fazia acordar de noite, sobressaltado com a imagem do escoadouro putrefacto que eram os bares underground que aos 19 anos se gabava de visitar, não foi capaz de se livrar do seu companheiro de insónias. Limitou-se a transplantá-lo para a sala, colocando-o numa posição em que não lhe faltasse luz, em que negro denso e profundo que o dominava pudesse brilhar e fazer sobressair os rasgões de um encarnado sanguíneo que o tornavam ainda mais hipnótico.
Nunca foi capaz de o emoldurar. Achava que se o fizesse estaria a encaixilhar também todo o significado que o maldito quadro pudesse ter, impedindo-o de se evadir, de se espalhar por toda a casa, de o envolver a ele próprio num sufocante tornado de angústia.
- Coisa estranha, murmurou.
Mesmo agora, contorcido sobre cinco almofadas puídas, não pelo uso, mas pelo esquecimento do fundo de um armário, não era capaz de ignorar que o “buraco” pertencia ali, que aquele rectângulo mais nítido da parede marca uma ausência. Um ponto final. Um abandono.
Os objectos não estão lá. Vão a caminho de um novo e promissor destino. Mas o espaço que lhes pertencia continua ocupado pelo hábito quotidiano de os ver, de os tocar, de os esperar sempre ali, a auxiliar ou a perturbar, dependendo dos casos e do uso que se queira dar ao mobiliário.
Ao alongar-se para agarrar o livro, abandonado no momento em que os seus olhos decidiram bloquear o mundo e metamorfosear-se em ecrã de projecção de memórias, o seu braço colidiu com o telefone e fez saltar o auscultador. Ouviu nitidamente o grito irritante da linha telefónica, anunciando às quatro paredes nuas a sua existência, o seu mal-estar por se encontrar assim, exposta ao silêncio ecoante da sala e e ao desprezo ignóreo do seu ouvinte.
La chute, página 28. A queda de quê? O monólogo começava a tornar-se cansativo e ele, mais do que farto do maldito “juge-pénitent” encharcado de “genièvre”, interrompera a leitura e recordara, nova vez, o suave perfume de maçãs verdes que tão inefavelmente o atraíra naquela miúda belga que, rememora, conheceu na Tate. Impressionantemente sozinha, achara do alto dos seus 15 anos, acompanhado que estava de mais de 50 outros alunos portugueses, a belga parecera-lhe distante, sábia, sedutora. Falara-lhe de arte num inglês seguro de si, que em nada desprestigiava o ensino belga, pregando uma cultura que hoje sabia ser superficial e memorizada, mas que na época melindrara a sua ignorância imberbe e fizera afluir, pela primeira vez na sua vida, o vulgar orgulho machista. Mas um luzidio ondular de cabelo perfumado, que obviou dois seios ainda insipientes mas provocantemente juvenis, foi o suficiente para que o seu apreço pela arte contemporânea se transformasse no eixo dos restantes cinco dias que passou em Londres, ainda que a sua musa permanecesse na Galeria, para o resto da sua memória. Talvez ainda hoje lá jaza, frágil e determinada, sapientemente comentando a infantilidade óbvia de todos os nomes da pintura e escultura britânicas. Ainda assim, crê ter sido ela a despoletar o seu amor obsessivo pela poesia, ao prostrá-lo diante de The Death of Chatterton, onde o malogrado poeta ruivo jaz num leito obscuro, parcialmente iluminado pela luz dormente que se derrama na sua face esquerda através da janela aberta. Wallis conseguiu pintar os 17 anos de desespero suicidário do poeta cuja vida primeiro o seduzira. Aos 15 anos, saber que uma existência fora tão pródiga em Vida que se auto-extingira com apenas mais dois invernos do que aqueles com que contava a sua própria vivência, assustara-o ao ponto de se deixar fascinar por génios loucos e precoces, transformando as suas vidas na sua ocupação principal. A sua primeira biografia, a de Chartterton, obviamente, fora pois dedicada a essa fugidia belga, cuja sobranceria instrutória fora afinal determinante para si.
É inútil regressar ao decrépito bar de Amesterdão, até porque já sabe que o autor do monólogo se limita a assistir à queda de uma vida. Só uma de entre tantas outras. Que interesse pode ter, sendo, além do mais, a de uma vulgar jovem anónima, sem obra reconhecida ou mérito atribuído?
O auscultador deslocado emite agora um som intermitente, indeciso, que, ainda assim, o impele para fora do apartamento, assemelhando-se a um dejá vu recalcado que lhe grita a incoerência que foi a decisão de se despedir de um apartamento que já não lhe pertence, onde a sua vida já só pode ser adivinhada e, o que é pior, em diferido. O livro deixou de lhe interessar, não há ninguém a quem telefonar. Os momentos que se tem dedicado a recordar estão ligados a meras ausências, não há nada ali que mereça persistir. Nem mesmo as almofadas. Tanto que antes de sair decide rasgá-las e afogar a companhia telefónica e Camus no seu recheio. As pretas têm esponja, a carmim e a cinzenta, penas. Porquê?
(25 de Maio de 1997)
A propósito de personagens, dimensões psíquicas e coerências narrativas.
A propósito de um café tomado numa noite estranha, em que nada fazia prever que a mente fosse capaz de se abstrair das agulhadas do pragmatismo quotidiano.
A propósito de viragens de rumo, de mudanças de ambientes e de recomeços voluntários.
A propósito daquela que foi a melhor companhia possível para esta noite. :-) Obrigada. Devo-te um café.
3 Somethin' Else:
seja a propósito do que quer que seja, obrigado pelo texto, bj
Eu é que agradeço. Fizeste com que conseguisse sair de mim por umas horas. E trouxeste a memória do sabor das conversas longas e desinteressadas. E a sensação de não estarmos sozinhos, ainda que irremediavelmente fechados na nossa cabeça. E que no final, tudo é simples - menos nós. :)
Reitero o que disse: às vezes é mais difícil ficar que partir.
Filipe,
:-) Muito datada esta escrita, verdade? :-) Beijo!
Linda,
Saber que quem está do outro lado da mesa percebe o que se tenta, às vezes a duras penas, dizer do lado de cá é dos sentires mais confortáveis deste mundo.
A empatia é das coisas que mais vale a pena tentar preservar e fazer crescer. :-)
As verdades fundamentais, que em momentos de clarividência se mostram tão óbvias, são sempre um objectivo. Mas a nossa complicação também dá sal à vida. ;-)
E sim. Ficar às vezes é um esforço hercúleo. Muito duro. Mas que se espera que valha a pena. :-)
Obrigada.
Enviar um comentário
<< Home