17 maio 2006

Ele

Começou a chover. Primeiro foram umas gotas grossas, esporádicas e indecisas que caíam do céu. Em minutos multiplicaram-se e começaram a ensopar a calçada calcária com força e desespero. Do sítio onde está sentado, com as costas contra a esquina da loja de tabacos, vê a luz do candeeiro velho a escorrer por detrás da chuva que começou a cair. Pensou na sorte da nuvem que pode assim, numa simples regra da física, libertar-se da carga extra. Quis chorar e deixou que a água lhe descesse pela cara, numa tentativa pavloviana de se auto-contagiar pelo movimento das gotas. Mas continuou incapaz de chorar. Continuou preenchido pelas lágrimas acumuladas dentro desse invólucro inútil de pele, esticado até ceder em rasgões que lhe parecem cicatrizes, dilatado de vida que se acumula sem empurrar o dique. Continuou sentado, na esquina da loja de tabacos, a olhar a rua escura e vazia, a ver o candeeiro escondido atrás das pérolas de água, a sentir nos tornozelos o vento que a força da chuva levanta do chão ladrilhado a calcário preto e branco.

6 Somethin' Else:

Anonymous Anónimo escreveu...

Gostei.Também é bom ver que continuas nas lides da escrita. :)

As tuas imagens "escritas" são muito fortes. imaginei imediatamente o tal homem num fim-de-tarde cinzento debaixo de chuva...

Mas não entendi esta parte:
"Continuou preenchido pelas lágrimas acumuladas dentro desse invólucro inútil de pele, esticado até ceder em rasgões que lhe parecem cicatrizes, dilatado de vida que se acumula sem empurrar o dique."

Porque é que a pele é inútil?

alguém

maio 18, 2006 6:50 da tarde  
Blogger A escreveu...

Talvez inútil porque a pele nestes e noutros casos não protege de absolutamente nada.
Talvez inútil porque de nada serve segurar as lágrimas e deixá-las cair quando todas as lágrimas assolam a alma do que é mais pungente em si: a dor.

Bolas... escreves mesmo bem. E pior: o que me vai na alma!
Beijos

(desculpa a ousadia)

maio 18, 2006 9:58 da tarde  
Blogger M. escreveu...

alguém,

Obrigada! :-) Desenhar com palavras é das coisas mais belas que vida tem.

O invólucro de pele é-lhe inútil porque não o protege, porque a pele não lhe serve de barreira
à entrada do sentir e, dualmente, impede-lhe a saída do sentimento. Além de inútil é limitativo, castrador. Uma barreira unidireccional.


a,

Yup, precisamente. Para a escrevinhadora é bom ver que sentiste o que Ele sentia, mas para a pessoa custa sabê-lo. :-S

Obrigada pelo elogio, é muito bom saber que as pessoas gostam do que pomos cá fora. Mas confesso que fico meia sem jeito - estou assim tipo encolhida na cadeira a olhar para o monitor meia de esguelha... :-)

E... Que ousadia???

Bjo!

maio 19, 2006 2:38 da manhã  
Anonymous Anónimo escreveu...

o alguém já que é anonimo podia antes ser como o romeiro, que, como o ninguém que é, nunca pensaria sobre esse flagelo que é ter pele.

maio 19, 2006 10:42 da manhã  
Blogger a miúda escreveu...

M., os elogios são merecidos.
Escreves de facto bem e interrogo-me algumas vezes se terás posto alguma obra cá fora ou não.
Pelo que dizes, parece-me que não, mas tendo em conta estes incentivos, talvez esteja na hora de pensares mais a sério nisso.
No entanto, um livro custa, é como um filho que temos criar, queremos que saia perfeito e nem sempre temos coragem e força para o fazer, pelo menos é o que eu sinto (em relação a ambos)!!
:s
Continua a escrita, é um deleite ler-te, e não vale a pena ficares envergonhada, embora a modéstia seja no meu entender (com conta peso e medida) uma virtude.
De notar, que o elogio que te faço, não necessita resposta e não espera, de forma alguma, uma retribuição, é apenas sentido e no meu entender, necessário (para ambas)!
Fica bem!
;)

maio 19, 2006 1:08 da tarde  
Blogger M. escreveu...

Filipe,

esse flagelo que é ter pele...

Assustas-me de tão bem que me percebes e de tão na mesma frequência que estás. Brrr...


nunf,

Obrigada. Sinceramente. :-)

Como costumo dizer, não tenho idade para escrever livros. ;-) Mas tenho vários na minha vida. Meus, escritos na gaveta, formatados na cabeça, desenhados nos corpos e almas de quem amo. De outros, na mesinha de cabeceira, no email, na gaveta, na editora. Algum dia hão-de querer nascer, como tu dizes.

Não sou modesta, mas os elogios embaraçam-me. Dou-me melhor com as críticas... ;-) Defeito profissional.

Obrigada pelo elogio e pelo incentivo. Mesmo.

maio 19, 2006 4:31 da tarde  

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