17 abril 2006

Hospitais públicos - Guia de sobrevivência

1 - A entrada de ambulâncias nas urgências é para ambulâncias. Se lá forem parar de carro, sejam cidadãos civilizados e estacionem no parque do hospital (a 300m) e depois caminhem para a entrada pedonal. Se não o fizerem, os senhores bombeiros gritam convosco e acusam-vos de irresponsabilidade social naquela linguagem colorida que caracteriza os homens de barba rija deste nosso país.

2 - Se forem virgens nas andanças hospitalares públicas (e espero que o sejam por muito, muito tempo), não percam tempo a procurar indicações de procedimentos nas salas de atendimento. À falta de balcão visível, perguntem à primeira pessoa minimamente inteira que esteja sentada por ali como é que a coisa funciona.

3 - Não há sangue, não há pressa. Manter-se nas pernas, ter os olhos abertos, articular discurso e não apresentar sinais de trauma são os quatro pré-requisitos para vos chaparem na ficha a etiqueta da cor mais baixa na escala das urgências. Grávidas, ossos partidos, mãos arrancadas, passa-vos tudo à frente, e não interessa a ponta de um corno que vocês já estejam a ver a vida toda em sequência rápida perante os olhinhos. Disseram-me que cortar os pulsos costuma funcionar, desde que a enfermeira de serviço vos veja. Desmaiar ao balcão também é uma boa táctica, mas dá mais trabalho, porque a perda de sentidos tem de ser real. Afinal, estamos num hospital...

4 - A vossa roupa e os vossos objectos pessoais deixam de ter importância a partir do momento em que vos deitam numa maca. Passaram a ser um paciente. Objecto de estudo e prospecção, sujeito e condicionado às regras e ditames do corpo médico e de enfermagem da instituição. Aceitem.

5 - As enfermeiras, por mais putas e sádicas que se mostrem, têm sempre razão. São um pesadelo kafkiano. Pequenas vitórias pessoais (como sorrir quando o médico as repreende por um erro) serão duramente punidas a posteriori na enfermaria. Lembram-se da Misery? É pior, mas sem as amputações. No trato com as enfermeiras, deixem o instinto de sobrevivência levar a melhor sobre todos os vossos valores morais e éticos, não se arrependam e nunca repitam a ninguém o que foram capazes de fazer para sobreviver dentro daquela enfermaria. É a guerra pela preservação da vida.

6 - Tudo o que ouviram sobre a comida de hospital é verdade. Deve-se comer melhor numa prisão chilena, remodelada depois do Pinochet. Façam o possível por ficar a soro, apesar do desconforto de sentir a intravenosa a dançar por debaixo dos vossos tecidos sempre que mexem o braço. Pelo menos assim comem direitinho, com tudo o que faz falta e sem paladar.

7 - O conceito de higiene tem uma interpretação muito própria num hospital. Salas amplas, claras e assépticas? Filme. Pessoal a trocar de bata descartável a cada dois minutos? Filme. Indivíduos com aspectos de serem concomitantemente portadores de hepatite, tuberculose e sars? Aos pontapés. Cheio a desinfectado? Boa sorte. Tomar duche? Não há, não se usa, não é preciso. Não acreditam? Experimentem.

8 - Nunca entrem de urgência num hospital público imediatamente antes de um fim-de-semana ou de um feriado. Cerrem os dentes e aguentem. O mais que possam. Se não tiverem outra hipótese, preparem-se, porque podem ficar operacionais em quatro horas, mas só saem quando houver médico para assinar a baixa. Ou seja, no primeiro dia útil que apareça. A estorieta dos filmes do "eu assumo a responsabilidade, dê-me o termo que eu vou-me embora!" não funciona. Façam como eu e tentem com várias pessoas diferentes, mas preparem-se para esperar.

Acima de tudo, minha gente... Se não der mesmo, mesmo, mesmo para espremer do salário o valor mensal de um seguro de saúde, boa sorte. Muito boa sorte. Mesmo.

5 Somethin' Else:

Anonymous Anónimo escreveu...

só te falta ir para a rua... "terra da fraternidade"

abril 17, 2006 3:46 da tarde  
Blogger Coroneu escreveu...

Bem visto, a nú e a crú...

abril 17, 2006 5:16 da tarde  
Blogger Lisa escreveu...

Been there, done that. Acompanhando, que eu, felizmente, nunca precisei. (vou ali bater na madeira).

Já agora, se tiver uma solipampa repentina, mesmo assim arrisco Santa Maria, ou atravesso a ponte até Almada, que é melhorzinho. Ao menos lá têm tudo o que é preciso, e já ouvi umas histórias de terror bem catitas da urgência do Cuf Descobertas, partem todas do bonito princípio de não haver triagem.

O melhor é ter um médico assistente que conheça os meandros e atenda o telemóvel, sempre haverá quem nos acuda.

Boas melhoras :)

abril 17, 2006 5:35 da tarde  
Anonymous Anónimo escreveu...

Está tudo a rolar, miúda?

abril 17, 2006 5:55 da tarde  
Blogger M. escreveu...

Filipe,

Eu já perdi esperanças de mudar cá o jardim à beira-Atlântico plantado. Mas o direito ao resmungo, esse, ninguém mo tira!! :-P


Coroneu,

Mais cru que nu, graças aos céus! As batas hospitalares não eram abertas nas costas, como nos filmes, e ainda bem, que na minha enfermaria só havia mulheres feiosas e fora do (meu) prazo de validade. ;-)

Brincadeirinha. Mas infelizmente é um relato ipsis verbis do que vi. E como foi a primeira experiência de internamento, chocou mais. Mas ficou a aprendizagem, eheheh.


Lisa,

Eu nunca tinha, sequer, entrado num hospital público, nem como visitante... Foi cá um embate...

Habituamo-nos aos mitos urbanos das enfermeiras de obstetrícia a gritar às parturientes "quando o fizeste não te queixavas assim!", mas depois vemos o ER e o Hospital Central e achamos que é tudo produto da nossa imaginação. Não é.

Espero que nunca precises, mas se for o caso, muito cuidado na escolha do destino. :-)


Leonor,

Mais aos solavancos, mas em marcha! ;-) Já está tudo, ou recomposto, ou a caminho de o estar. Obrigada! :-)

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Post-scriptum,

Têm-me dito ao longo do dia de hoje, à medida que vou telefonando às pessoas a explicar porque é que não fui aqui, ali e acolá, que não posso julgar todo o SNS através de uma única e má experiência.

Tenho respondido que o direito aos cuidados básicos de saúde não deve ser uma questão de sorte: de acertar com a data, o hospital, os outros pacientes, os médicos, as enfermeiras, os analistas, o equipamento, o abastecimento, os voluntários, a empresa de catering.

São demasiadas variáveis para que se possa fazer depender um atendimento da casualidade da sorte. Afinal, estamos a falar de vidas.

abril 17, 2006 11:47 da tarde  

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