13 junho 2006

Nos va por la sangre

Julieta del Carmen. É o nome da nova manicure do cabeleireiro lá da rua. É venezuelana e veio parar a Portugal há 18 meses, atrás da filha, casada com um português. Ainda não conseguiu visto para trabalhar porque caiu na asneira de dizer, quando entrou, que vinha para viver com a filha e ajudar com os netos.

Sente falta da Venezuela, da costa tropical e da família que deixou para trás. Fala com bom humor da oportunidade perdida de ir trabalhar para a Isla Margarita, receber em dólares. Em Portugal a coisa está má. O genro, motorista de transitários, não recebe há meses. Tem pelo menos três patrões a deverem-lhe uns 5.000 euros. O que a filha ganha não chega para os empréstimos da casa e do carro e para a educação dos três netos. Diz que não sabe se vai regressar a casa. Fala-me de um enamorado que lá deixou e que precisa, ano e meio depois, de saber se vale a pena esperar pela sua Julieta.

Sorri e conta dos portugueses que vivem lá no pueblo. Têm padarias, bombas de gasolina, supermercados e no dia de Fátima fazem uma festa gigantesca para a qual convidam toda a comunidade, uma festa onde se come e se bebe o que se quiser.

Diz que não sabe o que pensar do Chavez. Até percebe o que o seu presidente vai dizendo, mas o facto é que se vive cada vez pior. Nada como há uns cinco anos atrás. Pergunta-me o que penso do Bush, aquele que Chavez lhe diz que é um bêbado que está a arruinar a América Latina. Sentem-se os efeitos da propaganda, mas o fascínio pelos EUA está lá, como em todas as ambições sul-americanas. Conta-me estórias da filha da cônsul da Costa Rica em Caracas que foi para lá estudar e decidiu deixar a faculdade por um emprego como motorista a ganhar mil dólares por semana.

E lembra-se dos 15 anos que passou a conduzir autocarros escolares, das crianças que conheceu e daquela, em especial, que lhe telefonou esta semana para a convidar para a sua cerimónia de graduação. Não vai poder ir. Não há dinheiro e o trabalho no cabeleireiro, nesta altura, é muito, não dá para faltar. Talvez em Janeiro, sonha. Mas aí já não a vai ver.

Admite a melancolia de exilada e diz que às vezes se sente agobiada pela distância intransponível do Atlântico que não a deixa pega num carro e simplesmente ver aqueles que ama. Cantarola a música venezuelana que o patrão acabou de pôr na instalação sonora e conta-me como os portugueses são calmos e não dançam. Às vezes até parecem tristes, mas também não admira, têm uma vida tão difícil.

Acompanha-me à porta e diz-me para voltar, que gostou de falar comigo e que tenho que lhe contar mais coisas porque, desta vez, foi só ela que falou. Já vou a sair quando me pergunta se conheço mais venezuelanos por estas bandas. Digo-lhe a verdade, só conheço alguns mexicanos e colombianos. Pero para bailar es suficiente, sorri. É verdade, Julieta. Para dançar basta não ser triste.

2 Somethin' Else:

Blogger Nuno Guronsan escreveu...

Aqueles que apenas têm um breve contacto com nós, portugueses, levam normalmente uma imagem de festa, alegria e boa disposição. Mas aqueles que vivem o dia-a-dia connosco, sabem que isso por vezes não passa de uma máscara que pomos para tentarmos passar ao lado das dificuldades que todos os dias sentimos para sobreviver neste país. Mas as palavras de Julieta são como o nosso espelho e, ao mesmo tempo, a imagem da relatividade que devíamos pôr em todos os nossos actos, pensar que as nossas preocupações conseguem ser "pequeninas" quando comparadas com outras vidas muito mais duras.

Obrigado, M., pelo testemunho.

junho 14, 2006 8:00 da tarde  
Blogger M. escreveu...

:-) Faço minhas as tuas palavras. Por saber como pode ser dura e solitária a vida de um emigrante, nunca perco uma oportunidade de conhecer as pessoas que se decidem por Portugal. E a Julieta sorri mais do que eu. E, sempre que a vejo, esse sorriso ensina-me a ser um pouco mais ponderada.

Beijos, estrangeirado. ;-)

junho 18, 2006 10:34 da tarde  

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