09 maio 2006

Quite ou double

- O que queres dizer quando dizes que me queres?
- Que te quero.
- Mas que me queres como?
- Grelhado, que não faz mal e sabe bem.
- Estou a falar a sério!
- Eu também estava, mas deixa que eu explico.
- Seria a primeira vez.
- Quando digo que te quero, quero dizer que te desejo. Que te quero sem hesitações, que nada me vai contentar a não ser tudo o que tenhas em ti.
- Mas isso não é possível.
- Claro que é.
- Não, não é. Ninguém pode expôr-se assim a outra pessoa.
- Porquê?
- Eu é que estava a fazer a perguntas hoje.
- Desculpa, pensei que esta era uma cama democrática.
- Tem dias.
- Mas diz lá, justifica-me lá essa certeza de que ninguém se pode mostrar totalmente a outra pessoa.
- É óbvio que não. Todos nascemos com um instintivo sentido de auto-protecção. Os outros magoam-nos, não lhes vamos além das armas dar os flancos.
- É isso que pensas?
- É isso que sei. Toda a gente se protege. Em última análise estamos miseravelmente sós.
- E se não quisermos estar?
- Compramos um cão.
- E eu que achava que a cínica era eu.
- É a realidade, não é cinismo.
- Não acho. A realidade é o que dela quisermos fazer.
- Tretas.
- É a minha verdade. É, em última análise, a derradeira verdade que me sustenta a vida. A mais firma e frágil de todas.
- Pensei que já não acreditavas.
- Deixei de acreditar no ser humano individualmente. Mas ainda acredito no poder do livre-arbítrio e na minha própria força.
- Cansa ter que corresponder às tuas expectativas.
- Nunca peço nada.
- Antes pedisses.
- Queres que te faça um mapa?
- Era bem preciso, és demasiado complicada.
- Somos todos, a única diferença é que há quem seja coerente com a sua confusão intrínseca.
- Como tu. O cúmulo da puta da coerência...
- Nem por isso. Mas faz-se o que pode.
- Nunca pensas que as tuas verdades brutais e o teu sentido de ética emocional pode ser uma merda para quem está contigo?
- Às vezes dizem-me isso. Mas não sei ser de outra maneira.
- Podias agir mais como mulher.
- Manipuladora, esquemática, aproveitadora e indiferente. É isso que queres dizer?
- Não nesse mau sentido. Mas as mulheres costumam ser menos decididas. É mais fácil lidar com isso do que contigo.
- Amigo. Nunca disse que era fácil lidar comigo.
- Pois não. Mas exiges muito.
- Agora sim, chegamos lá. Porque é que não começaste a conversa por aí?
- Porque não sou igual a ti.
- Só exijo o que estou disposta a dar.
- Foda-se! Ninguém dá o que tu dás, percebe isso de uma vez por todas! Porque é que achas que toda a gente se mantém na tua vida mas nunca contigo?!?!
- ... Bem visto. E ando eu a pagar a um psiquiatra.
- Onde é que vais?
- Para casa.
- Não era isso que queria dizer.
- Talvez não fosse, mas se estás preocupado com problemas de futura compabilidade, talvez seja tempo de eu também pensar neles.
- Não vás.
- Tenho que ir. São os meus absolutos, percebes? Agora quero estar sozinha.
- Mas eu quero estar contigo.
- São as tuas indefinições, percebes?

16 Somethin' Else:

Anonymous Anónimo escreveu...

fantástico mas todas as palavras que tenho sobre o texto não podem aqui ser ditas, bj

maio 10, 2006 10:10 da manhã  
Blogger SK escreveu...

Excelente...
Mas não posso comentar muito mais...

maio 10, 2006 8:35 da tarde  
Blogger M. escreveu...

Filipe,

Obrigada. Estes royal flushs que se vão repetindo no interminável jogo de poker que é a minha vida fazem parte das estórias que ainda tenho para te contar. Eu telefono. :-)


Stephen,

Obrigada. Temos por estes lados uma conversa para terminar, se bem me lembro?

maio 10, 2006 11:44 da tarde  
Blogger Elsa escreveu...

Já dizia a outra hoje depois de almoço, na despedida do gelado...

maio 11, 2006 12:44 da manhã  
Blogger M. escreveu...

Olarilas. E então agora que dirá?...

maio 11, 2006 1:39 da manhã  
Blogger SK escreveu...

Temos sim senhor...

maio 11, 2006 9:07 da manhã  
Blogger Navel escreveu...

I feel there's nothing left to add. or comment. it's all there.

maio 11, 2006 3:32 da tarde  
Blogger Navel escreveu...

... but i should say i could be him. not her.

maio 11, 2006 3:37 da tarde  
Blogger M. escreveu...

Stephen,

Excelente memória a minha. ;-)


Navel,

That's the bottom-line meaning of quite ou double, cards on the table, you're either in or out. But if you're in, you've gotta double the bet...

I'm, for all good and all bad, definitely her.

maio 11, 2006 7:16 da tarde  
Blogger Navel escreveu...

I came to find out that I can't ever double the bet and risk loosing me. I believe no one can (or should, for that matter) be as clear as water. In the end, it's all about the individual (you, yourself, not others) and I do agree when he says in the end, we're "miserably" alone.

maio 12, 2006 9:22 da manhã  
Blogger M. escreveu...

Sometimes I believe that. Rather, I want to be that way. But I just can't escape from myself. And play my hand, doubling the bet. :-)

maio 12, 2006 10:23 da tarde  
Anonymous Anónimo escreveu...

ao contrário da navel eu seria muito mais depressa ela, de certeza. ele nunca

maio 15, 2006 10:39 da manhã  
Blogger A escreveu...

Excelente!
lol

Lembras-me alguém, miúda ;)

(e dormir na nossa cama sabe sempre muito melhor depois duma conversa assim)

Beijos

maio 16, 2006 8:29 da tarde  
Blogger M. escreveu...

Filipe,

Sim. Tu seguirias sem sombra da melhor dúvida a opção desta mulher. Nunca a deste homem.


a,

:-) É por estas e outras que manter posse de uma cama é uma coisa muito boa. ;-)

Beijo!

maio 17, 2006 3:07 da manhã  
Blogger Lisa escreveu...

Quando li este texto fiquei impressionadíssima mas não disse nada. Agora cá vai: seria, sem dúvida, ela. A "muito complicada".
Ao ler só me passava pela ideia que a maior parte dos homens afirmam a pés juntos desejar uma mulher completa, cheia, de alta manutenção. Depois, bem, depois foge-lhes o pézinho para o facilitismo e sonham com uma sopeirinha que lhes faça as vontades e lhes dê uma santa e calma vida.
Não são todos assim, atenção, mas muitos não se sabem aguentar à bronca com uma pessoa multifacetada, com vida e interesses próprios. Subconscientemente querem um espelho calmo, que os reflita de forma previsivel e não alguém com vida própria. O mito de Pigmalião: a mulher que criei, à minha imagem, como imaginei, e não um ser autónomo e diferente.
Desculpa lá a confusão, mas não é fácil explicar este meu ponto de vista, a história de minha vida é que já dei de caras demasiadas vezes com estes seres que, apesar de fascinantes, não nos veem, porque não nos sabem ver, porque não sabem olhar para além de si próprios.

maio 17, 2006 9:49 da manhã  
Blogger M. escreveu...

Não é confusão nenhuma. Percebo muitíssimo bem o que queres dizer. Diálogos destes têm-se repetido na minha vida, são uma constante. Mas eu, teimosa que sou, recuso-me a deixar de ser totalitária naquilo que acho que está certo na minha vida.

Eu sei aquilo que quero de uma pessoa. Também sei o que estou disposta a dar a essa pessoa. Continuo a achar que não me devo contentar com menos do que uma relação de equilíbrio entre os dois pressupostos. Não em algo que seja suposto valer a pena.

A maioria dos homens - nem todos, valha-nos isso - procuram nas mulheres precisamente essas câmaras de eco, que lhes reforcem a noção de que são seres humanos muito completos que buscam sem sucesso parceiras iguamente plenas. Quando se deparam com uma mulher que é tudo o que eles dizem ser, a reacção é, normalmente, esta.

Quando percebemos que aquela pessoa em quem depositamos um crédito absoluto ao que afirmava ser não passa, afinal, de alguém perdido dentro de si próprio a única vontade que fica é esta, a do quite ou double. Ficar sozinha. :-)

maio 17, 2006 10:39 da tarde  

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