Memória táctil (II)
(...)
Gargalhei com gosto, como cedo aprendi a fazer quando te levas a sério.
"Outro?" pergunto-te com o sorriso garoto de quem se sabe confortável em terrenos escorregadios. É a tua vez de rir. Regressas ao banco, libertas o cinto de segurança e abanas-te contra o encosto. Miras-me de soslaio porque sentes que te fixo.
"Fosse eu outro homem e isso seria muito desconfortável, sabias?"
"Sim, mas tu és um convencido, por isso deixa-te lá de merdas. Já sabes, olhar para ti é o meu desporto favorito."
"Pensei que fosse hóquei..."
Borrifo-te com o sumo azul enquanto reentras no trânsito e partimos em busca de uma Barcelona ainda por descobrir.
"Uma cidade diferente, não te parece?"
"Sim. E fica-te bem."
"Fica-me bem Barcelona?"
"Maravilhosamente."
Levantas-te da areia e estendes-me a mão para que te siga. Está na hora de voltar. Depois da epifania de ontem se ter diluído na troça descontraída com que sempre encaramos os momentos mais pesados, metemo-nos finalmente à cidade e descobrimos uma pensão simpática no Bairro Gótico, pertinho da Praça da Catalunha. Logo do outro lado da rua há um restaurante que deixámos para hoje. Andamos os dois com antojo de quantidades absurdas de tapas e de um excelente par de garrafas de Rioja há meses e por muito bom que seja o Pipa da East 19th nada consegue substituir os cheiros, as texturas, os sabores dos enchidos e dos queijos realmente espanhóis. Quanto mais não seja porque quando são comidos em solo nativo se esmeram para impressionar, arrebitam as suas qualidades, para deleite e deslumbre dos foraneos...
Aterrámos há duas semanas em Lisboa e ainda temos pela frente um mês e meio de sabática conjunta para desfrutar do primeiro regresso emparelhado a terras europeias. O único plano assumido à partida do JFK foi a ausência de planos. Bilhete de ida com regresso agendado, telefonemas às famílias lusas com a promessa de uma surpresa para breve e entrega da prole aos cuidados dos respectivos progenitores foram todos os preparativos que nos permitimos.
Um sentimento de pertença exacerbada aos hábitos e correntes de pensamento europeus foi-se acumulando durante o último ano até percebermos que as raízes profissionais e familiares impunham uma fertilização pessoal para poderem continuar a medrar.
Ambos vivemos nos EUA há demasiado tempo. Regressar à Europa, ou a Portugal, para trabalhar nunca esteve em causa. A opção de vida que assumimos, eu há seis anos e o Afonso há 17, foi consciente e propositada. Mas as infâncias e juventudes passadas entre Portugal e Espanha mantêm-nos dependentes de uma idiossincrasia que Nova Iorque não pode modelar, como se carregássemos connosco, grudados no ventre, resquícios de uma placenta intelectual e afectiva que teima em não cair ainda que não a alimentássemos.
As obrigações do quotidiano, ao fim de uns anos, transformaram-se em rotinas dogmáticas que os afectos familiares e os sucessos profissionais sedimentaram no fundo de um aquário de aceitação em que nos deixámos submergir. E foi no limite dessa apneia voluntária que nos mandámos para a Europa, numa pequena loucura consciente de dois meses, em jeito de lua-de-mel espiritual.
Barcelona foi o óbvio destino, em celebração da partilha das coincidências iniciais que continuam a fazer-nos sorrir, três anos depois do choque em cadeia que cruzou as nossas vidas.
(...)
Gargalhei com gosto, como cedo aprendi a fazer quando te levas a sério.
"Outro?" pergunto-te com o sorriso garoto de quem se sabe confortável em terrenos escorregadios. É a tua vez de rir. Regressas ao banco, libertas o cinto de segurança e abanas-te contra o encosto. Miras-me de soslaio porque sentes que te fixo.
"Fosse eu outro homem e isso seria muito desconfortável, sabias?"
"Sim, mas tu és um convencido, por isso deixa-te lá de merdas. Já sabes, olhar para ti é o meu desporto favorito."
"Pensei que fosse hóquei..."
Borrifo-te com o sumo azul enquanto reentras no trânsito e partimos em busca de uma Barcelona ainda por descobrir.
"Uma cidade diferente, não te parece?"
"Sim. E fica-te bem."
"Fica-me bem Barcelona?"
"Maravilhosamente."
Levantas-te da areia e estendes-me a mão para que te siga. Está na hora de voltar. Depois da epifania de ontem se ter diluído na troça descontraída com que sempre encaramos os momentos mais pesados, metemo-nos finalmente à cidade e descobrimos uma pensão simpática no Bairro Gótico, pertinho da Praça da Catalunha. Logo do outro lado da rua há um restaurante que deixámos para hoje. Andamos os dois com antojo de quantidades absurdas de tapas e de um excelente par de garrafas de Rioja há meses e por muito bom que seja o Pipa da East 19th nada consegue substituir os cheiros, as texturas, os sabores dos enchidos e dos queijos realmente espanhóis. Quanto mais não seja porque quando são comidos em solo nativo se esmeram para impressionar, arrebitam as suas qualidades, para deleite e deslumbre dos foraneos...
Aterrámos há duas semanas em Lisboa e ainda temos pela frente um mês e meio de sabática conjunta para desfrutar do primeiro regresso emparelhado a terras europeias. O único plano assumido à partida do JFK foi a ausência de planos. Bilhete de ida com regresso agendado, telefonemas às famílias lusas com a promessa de uma surpresa para breve e entrega da prole aos cuidados dos respectivos progenitores foram todos os preparativos que nos permitimos.
Um sentimento de pertença exacerbada aos hábitos e correntes de pensamento europeus foi-se acumulando durante o último ano até percebermos que as raízes profissionais e familiares impunham uma fertilização pessoal para poderem continuar a medrar.
Ambos vivemos nos EUA há demasiado tempo. Regressar à Europa, ou a Portugal, para trabalhar nunca esteve em causa. A opção de vida que assumimos, eu há seis anos e o Afonso há 17, foi consciente e propositada. Mas as infâncias e juventudes passadas entre Portugal e Espanha mantêm-nos dependentes de uma idiossincrasia que Nova Iorque não pode modelar, como se carregássemos connosco, grudados no ventre, resquícios de uma placenta intelectual e afectiva que teima em não cair ainda que não a alimentássemos.
As obrigações do quotidiano, ao fim de uns anos, transformaram-se em rotinas dogmáticas que os afectos familiares e os sucessos profissionais sedimentaram no fundo de um aquário de aceitação em que nos deixámos submergir. E foi no limite dessa apneia voluntária que nos mandámos para a Europa, numa pequena loucura consciente de dois meses, em jeito de lua-de-mel espiritual.
Barcelona foi o óbvio destino, em celebração da partilha das coincidências iniciais que continuam a fazer-nos sorrir, três anos depois do choque em cadeia que cruzou as nossas vidas.
(...)
2 Somethin' Else:
There's always "us", our lifes, experiences in what we write... Right?
Reality is in fact more surprising than any fiction we could've imagined without leaving the safety of the streets we already know. Even if we tell it our stories with a bit of imagination... ;)
Just I'm not wrong!
To another beatiful chapter!
Navel,
Absolutely right you are! Reality can beat any scenary we built for ourselves... We jut cheat on everyone mixing it all up in our words and leaving our readers without knowing who's-who or what's real... :)
I'm waiting on my next chapter... And on your first line. :D
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