26 janeiro 2006

Memória táctil (I)

Barcelona está lá bem ao fundo, avista-se por trás do teu perfil esfíngico e é pelos contornos da bela amante que vou perdendo o olhar. Tocas-me com o polegar e o indicador direitos no queixo, rodando-me a cabeça e desviando-me o olhar para essas pupilas transparentes que carregas no rosto. Inclinas-te para a frente fazendo troça da minha abstração com o sorriso inclinado que leva o teu nome até em outras faces.

Desembocámos ontem em Barça, depois do nosso Caminho de Santiago invertido, muito adaptado e com demasiado sexo para se aproximar sequer do original e secular intuito religioso. Chegámos com milhares de cores, sons, cheiros, paladares, texturas na cabeça, imagens que haviam ficado de visitas anteriores a solo ou com outras pessoas e que desejávamos partilhar, numa voracidade que só as cidades míticas provocam.
Cantávamos Bowie a plenos pulmões, num frenesi hilariante vindo de duas pessoas que, entre si, contabilizam já 68 anos e quatro filhos... Mas ao batermos com os olhos na bela, na dura, na imponente Barcelona o silêncio caiu. Encostaste o jipe na primeira berma e eu resvalei de novo no assento, a garrafa de Gatorade ainda a fazer de microfone encaixada na mão esquerda. O sol, que nos batia nas costas, reflectiu-se no espelho mal coberto de um camião que passava na estrada e voltou-se contra os nossos olhos.
Instintivamente desviámos o olhar e encontrámo-nos numa nova cidade. Numa Barcelona que queríamos redescobrir, sem passagens por camas ou copos que já havíamos vivido. Estendeste essas mãos enormes e poderosas que amo e seguraste-me o rosto da mesma forma quase agressiva que me apaixonou. Com o nariz a roçar a minha orelha esquerda, murmuraste "Esquece Nova Iorque, é aqui que te faço um filho."

(...)

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