Sorriso
As faces de estranhos trazem consigo pedaços de mundos que nos passam de raspão. Que achamos intuir, que gostamos de imaginar. As mais das vezes nunca sabemos se as vidas que conjuramos para as caras expressivas com que nos cruzamos são, de alguma forma, reais. Mas, com alguma dose de boa fortuna à mistura, as almas escondidas devolvem-nos os olhares e entram dentro da nossa bola de sabão.
Está frio. Parou de chover, mas o frio mantém-se. É um frio diferente daquele a que a proximidade do mar me habituou. É mais seco, mais tolerável. Quase agradável. A pedra maciça onde estou sentada não ajuda a aquecer e sinto as coxas arrefecerem através do tecido frágil das calças. O dia começou a declinar, mas a luz ainda me deixa ler. O sol é que já não aparece nas águas do rio que se embala ao sabor os barcos de passeio.
Comprei, numa ruazinha escondida por onde passeava na terça-feira, fazendo tempo para o debate, uma bolsa colorida tricotada para usar a tiracolo. Foi de lá que tirei as 900 páginas de livro que tenho no colo. E a máquina fotográfica. Mas a cidade nunca aparece no ecrã como a vejo. É esse o mal das fotografias; redutoras, sempre. Sem cheiro, sem vento, sem pele morna.
Levanto os pés da vertente sobranceira ao rio e rodo sobre mim para encarar os jardins. Estendo-me sobre o lado esquerdo com dois pensamentos concorrentes. Primeiro que estou dorida e por isso devo perguntar ao meu amável anfitrião onde fica o ginásio mais próximo. Depois, que abençoadas que são as cidades suficientemente miscigenadas e ampliadas para ignorarem mulheres sozinhas deitadas em beirais de rios com livros pesados nas mãos e olhares curiosos nos rostos.
Abro o livro com um movimento instintivo dos dedos que sabem onde está o marcador (desta vez um fósforo) e, assim, deixam os olhos livres para passear pelo exterior um pouco mais. Do outro lado da tira de terra batida que antecede o jardim há um banco de madeira, mesmo na margem da propositada floresta, com os vermelhos pés curvados a tocarem a relva.
Há um homem sentado nesse banco, que olha para o rio como se procurasse uma resposta universal às várias angústias da Humanidade. Fecho o livro sem o fósforo e procuro o caderno e a esferográfica com os gestos trapalhões de quem acaba de perder o equilíbrio porque o pé esquerdo resvalou para o lado vazio de apoios do rio.
Chama-se David. Soube ontem que a mulher com quem viveu nos últimos seis anos espera um filho. Supõe que seu. Acabou de receber, na tradicional volta do correio, o anúncio oficial de que a candidatura feita em Outubro passado ao Insead foi aprovada. Para o pólo do Japão. É essa carta que lhe espreita, razoavelmente amachucada, do bolso superior do blazer. O cabelo cor de mel, mais comprido do que se suporia num aparente homem de carreira avançado nos trinta, está revolvido e não é artisticamente. Estendeu os braços a todo o comprimento do banco e tem as mãos flectidas no sentido do solo, a envolverem as curvas terminais do encosto, o que faz pensar que será bastante alto. A beleza da proporção de Da Vinci. As pernas estendem-se, com um leve ângulo nos joelhos, à sua frente e a forma como as calças foram subidas antes de se sentar deixa entrever um tornozelo classicamente vestido.
Já eu vou na terceira folha e o David na boca do metro quando volto a cabeça para o banco novamente. Preciso de tentar ver se o meu original traz aliança. Mas o meu original voou. O banco está vazio. Granjo os dentes irritada com a minha estupidez em não ter aproveitado o período de observação antes de me precipitar a arranhar o papel. Agora vai ser mais difícil, o David vai sair forçado, hesitante, pouco convincente. Se pelo menos tivesse visto a aliança e a cor dos olhos... Atiro com o livro de notas para dentro da bolsa e inclino-me para apanhar o desgraçado do Conde de Monte Cristo que entretanto tinha aterrado de lombada para cima no areão.
"Se não tens cuidado, é desta que cais ao rio."
Pés calçados com meio salto próprio para o jantar desta noite pendentes em cima do rio, tronco apoiado na pedra, mão esquerda no saco e braço direito estendido para o tijolo que ando a ler. Não é uma boa posição. Mas o personagem já foi arruinado e já, não tenho nada a perder. Torço o pescoço para a esquerda e com o cabelo a cobrir-me parte da visão respondo "Se cair a culpa é tua, se não te tivesses levantado eu não estava aqui toda torcida a oferecer-te esse sorriso que tens na cara".
O sorriso vira gargalhada. "Então ainda bem que o fiz, porque além de estares muito cómica tens uma pronúncia muito engraçada."
Desisto de vez do David e da sua aventura emocional transcontinental, à força de golpe de rins recupero posição de gente civilizada e apanho o Conde empoirado do chão. É a minha vez de sorrir. É mais alto do que tinha assumido no moleskine. "Atravessas a ponte comigo para um copo de bom vinho espanhol e conto-te o livro que acabaste de me arruinar?"
E lá está o sorriso. Desta vez, do lado de cá da imaginação.
Está frio. Parou de chover, mas o frio mantém-se. É um frio diferente daquele a que a proximidade do mar me habituou. É mais seco, mais tolerável. Quase agradável. A pedra maciça onde estou sentada não ajuda a aquecer e sinto as coxas arrefecerem através do tecido frágil das calças. O dia começou a declinar, mas a luz ainda me deixa ler. O sol é que já não aparece nas águas do rio que se embala ao sabor os barcos de passeio.
Comprei, numa ruazinha escondida por onde passeava na terça-feira, fazendo tempo para o debate, uma bolsa colorida tricotada para usar a tiracolo. Foi de lá que tirei as 900 páginas de livro que tenho no colo. E a máquina fotográfica. Mas a cidade nunca aparece no ecrã como a vejo. É esse o mal das fotografias; redutoras, sempre. Sem cheiro, sem vento, sem pele morna.
Levanto os pés da vertente sobranceira ao rio e rodo sobre mim para encarar os jardins. Estendo-me sobre o lado esquerdo com dois pensamentos concorrentes. Primeiro que estou dorida e por isso devo perguntar ao meu amável anfitrião onde fica o ginásio mais próximo. Depois, que abençoadas que são as cidades suficientemente miscigenadas e ampliadas para ignorarem mulheres sozinhas deitadas em beirais de rios com livros pesados nas mãos e olhares curiosos nos rostos.
Abro o livro com um movimento instintivo dos dedos que sabem onde está o marcador (desta vez um fósforo) e, assim, deixam os olhos livres para passear pelo exterior um pouco mais. Do outro lado da tira de terra batida que antecede o jardim há um banco de madeira, mesmo na margem da propositada floresta, com os vermelhos pés curvados a tocarem a relva.
Há um homem sentado nesse banco, que olha para o rio como se procurasse uma resposta universal às várias angústias da Humanidade. Fecho o livro sem o fósforo e procuro o caderno e a esferográfica com os gestos trapalhões de quem acaba de perder o equilíbrio porque o pé esquerdo resvalou para o lado vazio de apoios do rio.
Chama-se David. Soube ontem que a mulher com quem viveu nos últimos seis anos espera um filho. Supõe que seu. Acabou de receber, na tradicional volta do correio, o anúncio oficial de que a candidatura feita em Outubro passado ao Insead foi aprovada. Para o pólo do Japão. É essa carta que lhe espreita, razoavelmente amachucada, do bolso superior do blazer. O cabelo cor de mel, mais comprido do que se suporia num aparente homem de carreira avançado nos trinta, está revolvido e não é artisticamente. Estendeu os braços a todo o comprimento do banco e tem as mãos flectidas no sentido do solo, a envolverem as curvas terminais do encosto, o que faz pensar que será bastante alto. A beleza da proporção de Da Vinci. As pernas estendem-se, com um leve ângulo nos joelhos, à sua frente e a forma como as calças foram subidas antes de se sentar deixa entrever um tornozelo classicamente vestido.
Já eu vou na terceira folha e o David na boca do metro quando volto a cabeça para o banco novamente. Preciso de tentar ver se o meu original traz aliança. Mas o meu original voou. O banco está vazio. Granjo os dentes irritada com a minha estupidez em não ter aproveitado o período de observação antes de me precipitar a arranhar o papel. Agora vai ser mais difícil, o David vai sair forçado, hesitante, pouco convincente. Se pelo menos tivesse visto a aliança e a cor dos olhos... Atiro com o livro de notas para dentro da bolsa e inclino-me para apanhar o desgraçado do Conde de Monte Cristo que entretanto tinha aterrado de lombada para cima no areão.
"Se não tens cuidado, é desta que cais ao rio."
Pés calçados com meio salto próprio para o jantar desta noite pendentes em cima do rio, tronco apoiado na pedra, mão esquerda no saco e braço direito estendido para o tijolo que ando a ler. Não é uma boa posição. Mas o personagem já foi arruinado e já, não tenho nada a perder. Torço o pescoço para a esquerda e com o cabelo a cobrir-me parte da visão respondo "Se cair a culpa é tua, se não te tivesses levantado eu não estava aqui toda torcida a oferecer-te esse sorriso que tens na cara".
O sorriso vira gargalhada. "Então ainda bem que o fiz, porque além de estares muito cómica tens uma pronúncia muito engraçada."
Desisto de vez do David e da sua aventura emocional transcontinental, à força de golpe de rins recupero posição de gente civilizada e apanho o Conde empoirado do chão. É a minha vez de sorrir. É mais alto do que tinha assumido no moleskine. "Atravessas a ponte comigo para um copo de bom vinho espanhol e conto-te o livro que acabaste de me arruinar?"
E lá está o sorriso. Desta vez, do lado de cá da imaginação.
7 Somethin' Else:
Fantástico... Gostei mesmo muito. Tens uma escrita fantástica!
alguém
Minha querida, para saberes o quanto gostei de ler as tuas palavras, tenho-te a dizer que acabei de estar uns valentes minutos sem olhar para o Benfica-Barcelona que vai decorrendo no ecrãn da caixa mágica. E depois de me ter imaginado na pele de David, fico com a certeza que há coisas muito importantes a serem vividas...
Querido (e anónimo) alguém,
Muito obrigada, ainda bem que lhe agrada.
Nuno,
Wow! Bem, responsabilidade tremenda. :P
Sabes, ainda vais a tempo de curar a benfiquite, ouvi dizer que há um tónico que faz maravilhas a eliminar o vermelhusco... ;)
Agora a sério, ainda bem que gostaste, ainda bem que te identificaste e ainda melhor que sentiste. :D É tão bom saber que se chega a esse lado, de uma certa maneira... Obrigada!!
E, acho, o mais importante será, sempre, o dia por estrear.
Beautiful.
Thank you! :D
:)
:)
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