06 março 2006

Nem todos têm

A propósito da Corrida da Mulher, que teve lugar ontem, no Porto, ficou prometida uma breve nota sobre solidariedade.

Habituei-me ao voluntariado nos Estados Unidos. Não numa perspectiva de dádiva superior, como é, demasiadas vezes, encarado em Portugal. Do ponto de vista da responsabilidade social. Com a evolução histórica, as sociedades ocidentais caminham - incontornavelmente - no sentido de um maior individualismo e de uma consequente solidão.

Por terras lusas e latinas em geral, a entidade familiar vai continuando a suportar, melhor ou pior, a maioria das necessidades efectivas e afectivas. Mas em países de cultura mais anglo-saxónica ou eslava (que tantas vezes encaramos como percursores de civilização a mimetizar), o dito tecido social estrutura-se muito mais em torno da responsabilidade individual colectiva. Não da desresponsabilização do "o Estado cuida", nem do "é para isso que pago impostos ao governo". Noutras sociedades, a via pública está limpa porque, não pertencendo a ninguém, é de todos.

É deste ponto que parte igualmente a consciência de que a doação do nosso tempo e do nosso esforço em prol da comunidade é um dever social. Foi um conceito que, confesso, abracei com prazer.

Temos, todos, vidas agitadas. Poucos mais do que eu, asseguro-vos. Não estando em férias forçadas :S, entre 9/10 horas de trabalho diário, cinco dias por semana, e os muitos vícios dos quais não abdico e que me forçam a criar espaço para o ginásio, a piscina, os amigos, os amores, os filmes, os livros, a escrita, a música, o teatro, o telefone, a cozinha, ... não sobram muitas horas úteis, até porque ainda não consigo dormir menos de seis horas por noite. Mas desde que regressei a Portugal, nunca deixei de ter tempo para dar.

Há alternativas perfeitamente viáveis, basta que haja vontade e espírito. Entenda-se que o voluntariado não é uma obrigação. Não se é pior pessoa por não o fazer, nem um santo por o praticar. Ser voluntário é, como nos diziam na catequese, uma vocação (e eu sou ateia, logo, isenta ;) ). Que tem tanto de espiritual como de pragmático. Voluntariar um par de braços e um cérebro é uma vontade que nasce em nós de devolver à comunidade uma parte de tudo aquilo a que temos direito. Pela simples consciência de que nem todos o têm. Dois exemplos que conheço e posso recomendar:

Online volunteering
Iniciativa da ONU que congrega, numa comunidade de voluntários online, um conjunto de pessoas dispostas a, sem sair de casa, ajudar organizações que actuam nos países em desenvolvimento através da tradução de documentos, da redacção de artigos, da pesquisa de informação, da construção de websites, do apoio a outros voluntários, da criação de logótipos, etc.

Cada voluntário, ao registar-se no site, escolhe o número de horas de que pode dispôr por semana e selecciona os projectos em curso com os quais deseja colaborar. Uns tempos depois é contactado pela entidade responsável pela tarefa que seleccionou e, caso esteja disponível para o cumprir, recebe todas as instruções e materiais por email. Simples.

Cruz Vermelha Portuguesa
A CV é a maior organização mundial de voluntários. Tem mais 140 anos de existência. Por cá, organiza-se em três corpos: o Corpo Geral, o Voluntariado Jovem e o Corpo de Socorrismo. Cobre todo o território nacional e tem Delegações e Núcleos provavelmente muito mais perto de vossa casa do que julgam. Cada um organiza-se de acordo com as necessidades da comunidade em que se insere.

Posso dizer-vos que o núcleo do Porto, aquele que conheço por dentro, tem um planeamento de actividades anual que prevê as acções calendarizáveis e que vai ajustando a sua actividade à medida das necessidades da comunidade e das sugestões dos voluntários. Reunimo-nos todas as primeiras Segundas-Feiras de cada mês, à noite, depois dos dias de trabalho de todos, para definir a nossa disponibilidade para as iniciativas previstas. Quem pode ficar no próximo fim-de-semana de serviço na venda de roupa, quem pode acompanhar a carrinha na ronda dos sem-abrigo, quem pode ajudar na campanha de doação de sangue, quem trouxe novas ideias, novas necessidades, novos projectos. Por aí fora.

A Cruz Vermelha é uma estrutura terrivelmente bem organizada e, ainda assim, extraordinariamente flexível. Internacional, actua todavia ao nível da rua onde vivo. Para quem tem estofo e condição física, dá curso profissionais de socorrismo. O próximo começa em Setembro e vão-me encontrar por lá.

Se acharem que têm um par de horas por semana que podem oferecer a quem a vida não deu a oportunidade de estar, neste instante, com os olhos colados num ecrã de computador, aquecido por roupa confortável e com comida ao alcance da carteira, passem por um destes dois espaços. Sem compromissos e sem falsas bondades. Um par de braços e um cérebro chegam para merecer um sorriso de quem agradece o vosso tempo. :)

2 Somethin' Else:

Anonymous Anónimo escreveu...

"A Cruz Vermelha é uma estrutura terrivelmente bem organizada e, ainda assim, extraordinariamente flexível", isto por cá chama-se "cantiga do bandido"; "quem é que te meteu essa peta?" "oh, foste enganada?", e por aí fora. Deve haver excepções, acredito, mas convém ser prudente nos termos. Tirando um ou outro projecto esporádico o trabalho social em Portugal continua, grosso modo, no campo da mediocridade. Só quem trabalha na área é que sabe que frases como essa são uma impossibilidade, neste momento aparentemente eterna... mas fica a intenção...
há legislação sobre o voluntariado em Portugal. Qualquer pesquisa permite aceder a ela, o pior é quando alguém a tenta pôr em prática, ela não existe na prática, ng sabe quem tutela o quê e o maior exemplo disso é ver o tipo de voluntário que existe em Portugal. É bom que haja pessoas a ter essa perspectiva mas isso da responsabilidade social é uma coisa que não passa na cabeça de ng neste momento, infelizmente. às vezes ter voluntários é prejudicial à execução dos projectos, porque não basta ter uma cabeça e dois braços, é preciso saber que hoje um voluntário, precisamente por causa da responsabilidade social, tem que ser uma pessoa preparada e com conhecimento suficiente para operar no tecido social. senão corremos o risco da não-ajuda ou, pior, da contra-ajuda.

março 06, 2006 2:28 da tarde  
Blogger M. escreveu...

Quanto à CVP falei apenas no núcleo que conheço. Que foi criado recentemente e que está a arrancar com uma série de projectos válidos de uma forma que, a mim que tenho a mania de avaliar tudo, me parece realista e producente.

Do ponto de vista do profissional, concordo com tudo o que dizes e sei que tens suficiente experiência de campo para teres uma opinião sedimentada e coerente.

Apenas duas coisas. Nada do que eu faça se irá substituir ao trabalho de um profissional. Não tenho formação em psicologia nem conheço o suficiente das realidades que vou abordar (pobreza, sem-abrigo, idosos dependentes, crianças e jovens sem apoio familiar, reclusos, prostitutas) para ter a arrogância de achar que posso fazer o trabalho deles.

É precisamente por isso que, no núcleo onde colaboro, trabalhamos sempre em parceria (como rede de sustentação e apoio) com entidades com projectos pensados, estruturados e levados a cabo por profissionais (Liga Portuguesa de Profilaxia Social, os Bombeiros, os Samaritanos, por aí fora).

Em segundo lugar, todas as acções de campo são - sempre - precedidas de formação. Uma formação que, se não faz de nós profissionais, pretende pelo menos impedir que demos esses tiros no pé de falas.

março 07, 2006 3:00 da tarde  

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