23 janeiro 2007

Detalhes da vida

Enquanto ouço a porta bater atrás de mim, percebo a fatia de luz que se escapa da sala. De tal forma as rotinas se encaixam no nosso quotidiano, que a tua mera presença em casa, a esta hora inusitada, me surpreende e faz surgir a crença supersticiosa que herdei da minha mãe: aconteceu algo e não pode ser bom.
Empurro a porta até ao limite da sua resistência e vejo a tua nuca, no sítio de sempre, sobranceira ao extremo direito de um sofá que conquistaste à força de tácticas guerrilheiras, dignas de umas FARC risonhas e brincalhonas.
- Por favor não me digas que foste despedido? - sorrio.
Giras o pescoço nesse movimento altivo de queixo levantado que tanto me irritava e seduzia quando finalmente te abri as portas de minha casa e franzes o sobrolho numa tentativa inútil de emprestar seriedade a uma expressão eternamente zombeteira.
- Não fui despedido. Saí mais cedo porque descobriram no hospital que tenho uma doença incurável e apenas dois meses de vida, por isso achei que o escritório me podia dispensar umas quantas horas...
Tens a mania parva de brincar com as catástrofes da vida - como no dia em que te dedicaste a contar anedotas sobre judeus no velório do pai (judeu, claro) do teu melhor amigo - e eu tenho a mania ainda mais estúpida de me rir das tuas piadas quase insensíveis. Continuas a tentar vender-me a teoria fantasista de que o riso é a terapia mais eficaz para lidar com a dor e desprezas em absoluto a fortuna que gasto todos os meses em psicanálise com a fórmula única do "quando aprenderes a rir-te de ti própria, vais deixar de precisar de terapia para te perceberes". Aprendi a viver com esse teu sentido de um humor exagerado, tal como aprendi a viver com os teus livros arrumados na despensa da cozinha ou com esse péssimo hábito que tens de cantar Sinatra a plenos pulmões enquanto fazes compras no supermercado do bairro.
- E então que doença tão súbita foi essa que te encontraram? Cancro? Enfisema pulmonar? Parvoíce galopante?
- Nada disso. O relatório falava de paixonite aguda, mas eu acho que é só um ataque esporádico de luxúria selvagem.
A sobriedade intrínseca que me dediquei, tantos anos, a alimentar e a desenvolver costumava constrangir-se quando te saías com estas tiradas de um romantismo de gosto duvidoso, mas também a elas acabei por me adaptar, aceitando as tuas declarações espalhafatosas da mesma forma que tu acabaste por te habituar ao meu comedimento emocional. A partir de certo ponto da vida, as ilusões incorporam-se na realidade e percebemos que as diferenças de expressão não são a priori significado de sentimentos díspares. A aceitação real do outro, sem necessidade de o bolear às nossas idiossincrasias individuais, é a única forma de construir um amor sustentável. Ainda que o único lugar lógico para guardar os livros seja a estante do escritório...
- Eu devia saber que a única coisa que te arrancava mais cedo do escritório era a perspectiva de cama.
- Por acaso...
E fazes a mesma cara que te vi apenas uma vez em tantos anos, a cara que fizeste quando te coube na sorte seres tu a dizer-me que o meu pai tinha morrido. Desengancho-me do teu abraço, volto a pousar os pés descalços no tapete e assusto-me.
- Sim? O que foi? E não me digas que o carro foi assaltado por anões disfarçados de elefantes enquanto estiveste no apartamento da tua amante romena, que já não estou com vontade de brincar.
Ris-te de forma tão espontânea que sinto os músculos dos ombros a relaxarem involuntariamente.
- Sempre tens aprendido algumas coisas comigo, ó miss uptight! Nada tão drástico como essa tua versão Kusturica das nossas vidas. O escritório quer que eu vá para Singapura. É só isso.
- Singapura?
- Pois.
- Quando?
- Daqui a umas seis semanas. Quando começar o semestre.
- Mas eu achava que te tinhas candidatado a Paris...
- Eles acharam que os programas do campus de Singapura eram mais producentes.
- Eles?!
- São "eles?!" que vão pagar o curso, não são?
- E isso dá-lhes o direito de decidir a tua vida?
- A bem dizer... Quase que dá.
- Mês e meio?
- Podemos sempre passar a fazer férias em Bali...
- E eu o que é que faço? E como é com a casa, os carros?
- Singapura tem das economias em mais forte expansão do mundo, não me parece que tenhas problemas em arranjar o que fazer. A casa fecha-se e os carros vendem-se. Ou vende-se um e deixamos o outro ao meu irmão.
- Tens resposta para tudo?
- Nem uma. Mas acho que conseguimos fazer isto funcionar. Não é a primeira vez que temos que nos mudar para ficarmos juntos.
- Pois não, não é, mas desta vez não são 400 quilómetros. Estamos a falar da Ásia, por amor de deus!
- Não invoques o nome de alguém que não conheces pessoalmente em vão. A gente resolve isto sem ele.
- Não brinques, isto é sério.
- Por isso é que estou aqui. Sempre é uma razão melhor para ter saído mais cedo do que saber que vou morrer daqui a dois meses, não achas?
- Quando é que tens que decidir?
- Até segunda-feira. Tirei o resto da semana e vamos pensar bem nisto. Mas acho que não há muito por onde me negar, não achas?
São raras as vezes em que sinto receio dentro de ti. Habituei-me a assentar as minhas dúvidas nessa tua segurança tão decidida e quase infalível e intuir no teu tom de voz reduzido e na tua mirada menos directa a insegurança que tens quanto à minha reacção faz-me perceber a importância desta escolha. Não me passa, na mais pura honestidade, pela cabeça negar-me a acompanhar-te. Mas... Ásia?!...

5 Somethin' Else:

Blogger Nuno Guronsan escreveu...

Mais uma vez, e por razões que serão aparentes para ti, apenas posso recomendar positivamente. E sim, é uma grande mudança em todos os sentidos e mais alguns. Mas só assim é que poderá valer a pena viver esta vida, ou não?

E eu ainda não conheço Singapura ;)

Beijo.

janeiro 23, 2007 7:54 da tarde  
Blogger carrie escreveu...

hmmmm... n me parece q sejas do tipo de negar à partida uma ciência (neste caso um sítio, uma vivência) que desconheces. :)
eu tb ainda n conheço singapura :) eheheheh

dizem que a almofada é uma boa conselheira. eu gosto mais do duche. :)
beijoca

janeiro 24, 2007 12:24 da tarde  
Blogger carrie escreveu...

ah! esqueci-me de uma coisa importantíssima: de facto essa notícia é sempre melhor que a outra.

janeiro 24, 2007 12:26 da tarde  
Blogger A escreveu...

Quando nos dirigimos a um Psicólogo/Psicanalista/Psiquiatra ou qualquer outro médico cuja especialidade começa por Psi-(...) há uma certeza: levamos as questões connosco, mas também as respostas.

"Detalhes da vida" diz tudo, não diz, M.?

Beijo enorme

:)

janeiro 25, 2007 1:05 da manhã  
Anonymous Anónimo escreveu...

qual a razão de estar eu a estranhar estes comentários?

janeiro 25, 2007 10:16 da manhã  

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