17 março 2006

Os nossos mortos caminham connosco

Passamos pela vida a velocidade constante. De cruzeiro. Mas alguns, por defeito ou feitio, decidem acelerar. Correr ao invés de caminhar. Alguns de nós optam por seguir em frente cada vez mais rápido. Escolhem a fuga para a frente. Preferem encetar caminhos novos, sempre, estradas virgens, sempre, voos inexplorados, para sempre.

Quando disparamos pela vida fora, há algo de nosso que fica para trás. Essa massa compacta que constitui o nosso passado segue connosco. Os nossos vivos - os amigos, a família, os amantes - continuam diluídos na massa do sangue, impregnados nas moléculas. Mas os nossos mortos, os nossos mortos ficam para trás porque mantêm, toda a vida, a mesma velocidade. É apenas quando paramos, quando assentamos pés no nosso novo destino, que eles nos alcançam e se nos reúnem novamente.

Os nossos mortos são a poeira de estrelas que segue no nosso encalço, eternamente aguardando novo abrandamento para pacientemente se reaproximarem e uma vez mais tocarem a nossa vida nessa elipse perene.

Tudo é, apenas, uma grande perseguição. Uma gigantesca fuga ao tecido morto que não queremos admitir que carregamos na nossa esteira. Inventamos significados para a vida, sem perceber que a existência é, per si, um signo próprio. Sem perceber que são os nossos mortos que dão sentido à nossa vida.

É por encontrar nesta ausência de fio de prumo o único sentido obrigatório da vida que me recuso a parar. Que vejo em cada caminho por trilhar um novo desafio a abraçar. É por me sentir em casa neste gigantesco espaço vago e branco, sem regras nem pressupostos, que exijo tanto. De mim e de todos. Que me liberto tão facilmente de quem prova não ser capaz e abraço tão desenfreadamente quem me mostra que pode cá estar.

Tenho apenas uma vida para viver. Apenas umas dezenas de anos para fazer deste corpo e de tudo o que o habita o melhor que seja capaz. É muito pouco tempo e poucos terão a inevitabilidade da morte tão certa como eu. Desde tão cedo como eu. É meu dever fazer de cada instante de partilha, de cada metro de viagem, de cada medida de ar uma vivência plena. É meu dever fazer sorrir todos os que escolho manter na minha vida e exigir-lhes que me devolvam a transcendental alegria da partilha.



Oito dias. Mil e trezentos quilómetros. Seis cidades. Nove amigos e incontáveis conhecidos. Várias camas e mesas até agora desconhecidas. Sorrisos sem conta, lágrimas enumeradas. 256 mb de fotografias, dois bilhetes de cinema, um copo roubado, dois moleskines amachucados, uma peça de roupa interior alheia, quatro livros insuspeitados; tudo cai sobre a mesa numa amálgama de significados profundos. Densos. A saúde - a física, aquela que se mede nos exames - nem por isso melhorou. Mas a intuição que me guia pela vida ficou mais nítida.


Parto novamente daqui a umas horas. Com novo sorriso no saco, mais caras, génios e corações sob a forma de números de telefone na mala, e as linhas da minha nova tatuagem a desenharem-se num espaço em branco, ao lado daquele que já está ocupado pela certeza da próxima área de pele a gravar.

Obrigada Navel, Filipe, "Presidente" [;)] e Coroneu pelo espaço que ocupam há anos nesta vida. Obrigada Nuno e Lisa pelo lugar que me têm guardado nos vossos dias.

4 Somethin' Else:

Anonymous Anónimo escreveu...

bem-vinda! mais um texto à "joão". sabes, acho incrível que mantenhas essa postura e que tenhas a cara tão aberta para a vida. às vezes acho que já perdi tanta coisa que chego a invejar-te. apesar de tudo tenho a certeza que, invariavelmente, não acabaremos como dois tolos no fim das nossas vidas. mas também não quero chegar aos 40 e ser como tanta gente que conheço, interessante até, mas que tem as mãos vazias (sós, cheios de relações frustradas, com muito pouco para dar já, egoístas, autênticas almas penadas que uns charros e uns copos, uns concertos e uns poemas não conseguem esconder)esses vivem só dos mortos, não? um beijo enorme, aguenta-te que enquanto houver mulheres como tu, pessoas como tu a vida é, de certo, mais bela...

março 17, 2006 12:59 da tarde  
Blogger Nuno Guronsan escreveu...

Depois de um dia muito cansativo em termos profissionais, que bem que soube ler as tuas palavras...

Vou pôr uma chamada a este post no meu blogue, espero que não te importes, beijos!

março 17, 2006 8:05 da tarde  
Blogger Navel escreveu...

I have to remember to send you something someone once said to me about the absence of meaning in life. It's beautiful.
Thanks for the kind words. You know I reciprocate.
Leave and return, that's what life has been since we met...
Once again, enjoy!
We'll still be here.

março 20, 2006 3:24 da tarde  
Blogger M. escreveu...

Filipe,

É, este leva a minha cara e tu continuas a conhecer-me demasiado bem. ;)

Acho, cada vez mais, que só perdemos o que nos é estranho. O que nos entranha permanece, ainda que submerso. Não ser capaz de fugir a esta mulher que sou e que conheces é, alternadamente, divino e dantesco. Sem intermédio. Mas vai valendo a pena.

Não acredito que tu, ou eu, cheguemos aos 40 mirrados. Há demasiada vida cá dentro para que deixemos isso acontecer. A diferença reside apenas na proporção das cedências que estamos dispostos a fazer. E assombrados que sejamos pelos nossos mortos, continuamos a viver.

Obrigada, emocionado, pelo elogio. Sabes bem o valor que lhe dou. E o sentimento que lhe retribuo, Poeta. :)


Nuno,

Não sabes como me alegra saber que, com palavras, posso tornar os momentos de alguém mais especiais. Como me faz sorrir envergonhada.

E claro que não me importo. Elogia-me. Muitíssimo. Obrigada. :)


Navel,

Remember to send me something someone once said to you about the absence of meaning in life! :D

Pacing around in broader circles, going and returning. :) It's so good to have a soul-mate for this freaky journey... :D Thank you for that. And for being. Here.

março 30, 2006 12:42 da manhã  

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