06 janeiro 2006

Ulalume

Tropecei nele por mero acaso. Descia as escadas do Passos Manuel, depois do Fausto de Ortiz, quando o vi. No final do último degrau, o salto do sapato ecoou na calçada calcária com o som penetrante de sempre e olhei para a FNAC, mais por hábito que por esperança de ainda a ver aberta. Encostado ao poste de iluminação, com a luz a escorrer pelo casaco claro manchado de chuva, acendia um cigarro com um fósforo que logo se extinguiu. Ficava do lado oposto ao da minha casa. Tirei o isqueiro da carteira e fiz soar os tacões pelos dez metros que nos separavam. Sem uma palavra, estendi-lhe o Bic azul. Sem um som, acendeu o Gigante e com um olhar intimou-me. Descemos a rua em silêncio, segurou a porta para que eu entrasse no Guarani e, antes de me seguir, falou pela primeira vez. "Maldita cidade gelada". Entre a luz, os espelhos e os livros abandonados à sorte do clube-cruza-livros, partilhámos estupidamente um chá. O custo maldito da venda da alma ao Diabo caiu-nos na conversa e o sangue voltou a correr nas veias agora azuladas de uma mão delgada, pálida, de dedos longos que repousava sobre o meu isqueiro. Os olhos evitavam-me, fugiam-me, até eu dizer "Chamo-me Mia". Franziu o sobrolho e fitou-me até ao fundo do meu disco óptico. Nos olhos cansados, raiados de vermelho, o verde escondia-se junto à pupila, afogado no castanho suave de uma íris extraordinariamente pequena. Tirou do bolso interior do casaco uma Meisterstuck preta, agarrou-me o pulso com uma violência insuspeitada num aspecto tão etéreo e gravou-me nas costas da mão, fazendo dançar os tendões, um par de versos que não via há anos. "Dou-te um nome de água / Para que cresças no silêncio."

Levei-o para casa. Ficou, com as pernas dobradas junto ao peito, num canto do sofá. Agradeceu o copo de vinho e perguntou "porquê?". Encolhi os ombros e carreguei no play. Frank Sinatra apareceu a cantar uma música de Natal porque tinha sido o Have yourself a merry little Christmas que tinha ouvido nessa manhã. Sentei-me no chão, em frente a ele, as costas apoiadas na estante. Estendi o braço para a prateleira dos indispensáveis e atirei-lhe o livro velho onde primeiro li o poema que me ardia na mão. Pelos cantos das folhas procurou um número de página que eu sabia de cor e leu. Quando chegámos ao fim da segunda garrafa de Romezal tinha as pernas longas estendidas e os pés apoiados nas costas do sofá, por onde deslizava o casaco já seco. Ouvi os últimos acordes do Extensions sentada no tampo frio da mesa, com um livro nas mãos e o olhar preso na imensidão da sala completa pela primeira vez em muito tempo por uma presença que não a minha. A música morreu, os poemas acabaram e o silêncio voltou. Deixei-lhe um cobertor no espaldar de uma cadeira, acendi a luz de presença da entrada e fechei a porta do quarto no trinco. Os lençóis demasiado frescos para esse Inverno abraçaram-me e caí num sono anestesiado e confuso. Algures durante a madrugada, ouvi-o fechar a porta e senti o colchão mexer-se enquanto entrava naquela cama que era apenas minha. Estava nu. O corpo frio. Encostou-me uma mão às costas e com a outra envolveu-me no abraço gelado do poeta. Dormimos assim, dois corpos estranhamente cansados, disparatadamente arrefecidos.


Ficou lá por casa até hoje. E neste Natal só posso agradecer-lhe por nunca ter abandonado a crença absurda na salvação das almas vendidas ao Diabo. O abraço nocturno já contém algum calor e os corpos despertam retemperados. Os olhos, esses, fitam os meus a toda a hora, principalmente quando canto pela sala afora o verso que tatuei no antebraço esquerdo. "Ah, night of all nights in the year!"...

Publicado originalmente em Reservoir Dogs.

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