02 janeiro 2006

Quake 4 para PSP vs as putas do Henry Miller

Lembro-me de ser miúda e de ler livros proibidos às escondidas dos meus pais. Aqueles livros que estavam na prateleira mais alta da estante, mas que tinham uma encadernação suficientemente parecida com a da restante colecção para que a sua ausência passasse despercebida... Sinceramente, mais do que o conteúdo dos ditos volumes - se bem que algumas passagens tenham permanecido até hoje, confesso -, recordo os rituais que envolviam a prevaricação. A busca do esconderijo perfeito, que levava o Opus Pistorum para dentro do jarrão do corredor que nunca ninguém limpava, ou o Laranja Mecânica para o fundo da gaveta de baixo da cómoda, onde se guardavam os lençóis de linho naftalinados eternamente dobrados à espera de hóspedes que nunca apareciam. O medo de ser descoberta porque ser criança era sinónimo de aceitação total e absoluta das regras parentais, dado adquirido e infalível no jogo do respeito e do cumprimento dos papéis familiares. A ânsia contente de chegar a casa depois das aulas e saber que, assim que fossem despachados os deveres, iria poder desfrutar de umas horas de prazer solitário navegando pelas linhas de algo tão mais apetecido quanto mais desadequado fosse.

Saudosismos traiçoeiros, generation gaps ilustrados em músicas manhosas do Cat Stevens, bronzeados do Javi e do Pancho e outro meio mundo de referências geracionais à parte, o que resulta desta e doutras vivências é um conjunto de gente com espírito crítico mas maioritariamente desprovido de capacidade de intervenção, com uma certa tendência para aburguesar. Gente que nasceu, grosso modo, entre 1970 e 1980, que nunca sentiu na pele a ditadura e que cresceu num país onde a classe média emergiu em menos de uma década, onde a organização político-económica seguiu orientações pró-socialistas inseridas numa esfera, ocidental, tendencialmente mais liberalista; num país onde as idiossincrasias culturais nunca se libertaram de um certo provincianismo pseudo-cosmopolita de arreigadas características sebastianistas.

Não sei muito bem o que fazem os seres humanos que, hoje, têm os treze anos do meu primeiro parágrafo. Tenho uma ideia vaga de que vivem entre a electrónica, uma sexualidade prematura e muita aparência. Mas não alcanço a definir friamente o ambiente sócio-cultural em que crescem estas nossas crianças, na mesma medida que diferencia jornalismo e história - só o distanciamento permite a frieza científica. Em última análise, só quando a juventude dos intervenientes tiver morrido, entrando no processo de putrefação em que a nossa prolifera, se poderá constituir em matéria analítica. Mas creio poder isolar, desde já, o imediatismo e a acessibilidade facilitista.

Quake, Civilization, Championship Managers (seja lá bem do que for), ou Call of Duty oferecem poderes no mínimo visuais de vida e morte sobre mundos criados ao bel-prazer de pequenos ditadores de polegares avançados a quem nada parece já surpreender. A acumulação de recompensas materiais, por carências de acompanhamento intelectual e afectivo, desvalorizam o sentido de conquista. O porreirismo amigalhaço saltou umas quantas gerações e sucedeu, desenfreado, ao respeitinho-é-muito-lindo-e-eu-gosto-por-isso-baixa-a-bolinha-que-quem-manda-aqui-ainda-sou-eu, criando monstrinhos que desafiam abertamente qualquer tipo de autoridade sob a complacência sorridente do “é uma criança cheia de personalidade e não lhe podemos cercear a liberdade de expressão”.

Interessa-me saber que adultos vão dar as crianças de hoje. Já que vai chegar o dia em que vão ser elas a autorizar a transferência bancária da minha reforma para Crystal Island, onde espero estar, em paz comigo e com o mundo, daqui a 60 anos. E que líderes podem ser estes seres humanos que, me parece, crescem sem senso de responsabilidade, sem noção de autoridade, sem espírito de sacrifício, sem motivações transcendentais? Confesso que deposito as minhas esperanças na necessidade sôfrega de recorrer a mundos de imaginação que atesta o sucesso do Harry Potter e que parece ilustrar um certo inatismo daquilo que, afinal, nos faz crescer – a capacidade de sonhar de olhos bem abertos.

As putas do Henry Miller ensinavam-nos a ser adultos. O que ensinam os jogos de estratégia?

Publicado originalmente em Reservoir Dogs


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